A rua onde eu moro é uma das poucas que ainda não tem asfalto no meu bairro, o que faz com que eu chegue todos os dias com os pés lotados de barro e não foram poucas as vezes que eu me esborrachei no chão em dias de chuva, a poucos metros de casa. Mais um motivo pelo qual pago barato no apartamento, então não dá pra reclamar.
Quase chegando na entrada do condomínio, já eram quase onze da noite, tive aquela sensação horrível de estar sendo observada. Chamei o porteiro no interfone, que demorou alguns - longos - minutos pra abrir o portão, inquieta olhei para os lados, para trás... Eu tinha certeza de que estava sendo observada, comecei a sentir medo e a sensação de que algum ruim estava prestes a acontecer, de repente dei um pulo assustada com o ruído da trava do portão sendo liberada, meu coração disparado e eu me sentindo uma otária, com certeza o porteiro viu a cena cômica pela câmera, que idiota, com certeza é coisa da minha cabeça.
Entrei ainda trêmula do susto, e subi com dificuldade as longas escadas até o meu "apertamento", entrei e como de costume, a primeira coisa que fiz foi me jogar na cama e fechar os olhos pra pensar um pouco antes de ir pro banho. E ao fechar os olhos, um nome me veio automáticamente na cabeça... "Vitória". Durante o banho os pensamentos que me rodearam o dia inteiro voltaram "Onde estariam os pais dela? Porque estava sozinha em um mercado tão grande? Seria mesmo uma ladrazinha, ou era só uma cena? Onde conseguiu aquelas moedas? Por que eu estou tão preocupada? Acho que no fundo eu sei bem o porquê." Quando enfim me deitei, os mesmos pensamentos quiseram voltar - ah não... Já chega! - Liguei a TV na tentativa frustrada de me distrair com outra coisa, afinal, uma hora dessa aquela menina deve estar jantando com os pais em casa, segura, limpa, quentinha e com a barriga cheia, diferente de mim que esqueci de pegar meu jantar no mercado e agora estou com a barriga roncando. Decidida a não pensar mais nesse assunto, desliguei a TV, coloquei meus fones de ouvido e fechei os olhos pra ver se conseguia pegar no sono. Consegui.
De manhã seguiu-se a mesma rotina. Ao sair pela portaria com meus fones de ouvido e volume no máximo, tive a sensação de estar sendo seguida - é coisa da minha cabeça, é coisa da minha cabeça - abaixei o volume do som no celular, e quase chegando no ponto de ônibus sinto alguém dar um puxão na minha mochila para baixo, já estava pronta pra xingar, quando me virei e... Vitória!? Ela estava com o mesmo macacão azul, os cabelos bagunçados e um pouco suja. Minhas suposições em relação a ela estavam se confirmando, e eu não estava gostando nem um pouco.
- Oi moça Gisele! - disse tirando o cabelo do rosto.
Moça Gisele?! Achei graça, mas não consegui rir.
- O...o que está fazendo aqui? Quer dizer...Olá! O que você...está fazendo aqui? - odiei a forma com que ela me deixou nervosa, e sem graça. Eu não gosto de crianças! O que está acontecendo comigo?
- Eu moro na sua rua perto da sua casa. Eu te vi chegando ontem.
Entendi a sensação de estar sendo observada, seguida e afins. Ela falava e sorria como se fosse minha amiga, ou minha irmã ou algo do tipo. Mas ela não era nada... Nada. É só uma criança incoveniente.
- Ah que legal... - não consegui dizer nada além disso, e fiquei pensando onde ela poderia morar, perto da minha casa? Quase não tem casas lá.
- Posso ir pra o seu trabalho com você? - disse sorridente. - eu vou num lugar lá perto e...
- Escuta menina - interrompi irritada - eu sei o que você quer e eu não vou ficar comprando doces pra você todos os dias agora, entendeu? E, não. Você não pode ir para o meu trabalho, nem ficar me observando enquanto chego em casa, e não pode me seguir também, ok!? Vá para casa com seus pais, ou para escola, ou para qualquer lugar... só me deixa em paz.
- Mas...mas o que eu fiz? Eu só...eu não queria... - disse quase chorando e confusa.
- Olha...me desculpe - tentei me retratar percebendo o quanto fui grossa - Se acalma, você não fez nada. Mas vá embora, eu é que não estou bem e não quero companhia. É melhor você ir tá bom?
- Eu vou embora mesmo. Eu que não quero falar com você, achei que você era legal, mas você é uma chata! - disse se afastando e pisando firme. Não consegui dizer mais nada, só fiquei observando ela correr, e me senti tão culpada que não consegui nem respirar direito. Engoli seco.
- Já vi que o dia vai ser longo hoje.
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Refém
RomanceGisele é uma jovem adulta que mora sozinha no subúrbio do Rio de Janeiro, sua rotina tem sido a mesma desde que algumas coisas aconteceram em sua vida, mas isso está prestes a mudar.