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TEIMOSOS FLOCOS DE NEVE insistem em pesar em meus cílios, na tentativa de me lembrar de que eu não estou mais em casa. De que, possivelmente, nada disto é um sonho.

Abro os meus olhos para o céu pálido e aberto, sem quaisquer resquícios da última nevasca vinda do Reino do Inverno. Por outro lado, o solo é o retrato de suas consequências e nossos corpos padecem com a impiedade do tempo.

O meu corpo, para ser preciso. Porque Elirya é feita de porcelana dura e densa. Desgastada, empoeirada, quebrável... Assim, o tempo é incapaz de subjugá-la da forma que faz comigo. No entanto, os mesmos fatos que deveriam me tranquilizar, só tornam piores as minhas paranoias e preocupações. Quanto mais próximos estamos do castelo do Rei, mais temo por sua integridade física.

Cada momento da jornada eu receio por vê-la fragmentada. Estilhaçada.

E cada momento que eu temo por isto, eu estilhaço a mim mesmo.

Rolo para o lado e toco o seu braço, que agora está ainda mais gelado do que a própria neve. Encolho o meu toque, sentindo as pontas dos meus dedos amortecidas. Quase não as sinto. Um sentimento paradoxal de determinação e abatimento me suprime.

Eu não posso tocá-la.

Não da forma que eu desejo tocá-la. Porque onde deveria haver carne, ossos e pele, há somente a casca dura e perecível. Quem dera isto fosse um item único na minha lista de frustrações. A lista só aumenta. Cada passo é um novo item, escrito em letras cursivas em folhas envelhecidas.

Sentimento paradoxal. Me sinto no centro de um velho "cabo de guerra". Não sei que lado meu irá vencer, o corajoso ou o covarde.

- E-Elirya - balbucio, entre um bocejo curto - Temos que prosseguir.

Minha princesa não dorme de olhos fechados. Porque o seu rosto está fadado a permanecer estático em uma mesma expressão dolorosa. Quase triste. A exceção são os seus lábios, que ainda podem se mover, apenas para falar. Para lamentar os seus erros passados.

Ela se levanta, esfregando os olhos sem razão alguma, como um velho hábito humano que não pode ser abandonado.

- Vamos - ela assente, após um segundo demorado e se levanta.

Imito-a, e me levanto. No entanto, uma brisa gélida bate em meu rosto desprotegido e eu me afundando no tecido fino do pijama que, surpreendentemente, vem me livrando de uma inevitável hipotermia.

- Está com frio?

- Muito. - estremeço - Mas a magia do Sr. Pelúcia ainda funciona. Senão, já teria morrido.

- Estou preocupada, Clay - ela encara as sapatilhas se afundando na neve fofa, conforme andamos.

- Não fique. Estamos quase chegando. O Oráculo é bem no sopé da montanha. Vamos conseguir.

Caminhamos para baixo, mirando o sopé escondido pelas neves da montanha. A paisagem não poderia ser um melhor retrato do caos que se espalha pelos Quatro Reinos. Elirya me explicou que todos os reinos se mantêm estáticos em relação ao tempo e temperatura. Enquanto no Reino do Inverno as nevascas perduram o ano inteiro, o céu azul permanece no Reino dos Doces.

Agora tudo é uma salada. Uma mistura de bolo. O caos mesclou e fundiu reino por reino até se tornar a massa distópica que nos encontramos.

Eu lembro muito bem da forma como tudo começou. As palavras princesas, castelos, Reino dos Doces e Rei- Rato prometiam-me uma aventura suave e quase infantil. A ideia se dissipou quando vimos os corpos sanguinolentos dos moradores do Reino dos Doces estirados sobre as casas de pão-de-mel desabadas. Sangue açucarado. Ossos molhados de chocolate, carne viva em chantilly... A aldeia virara uma mistura bizarra de livros infantis e contos macabros.

Desde então, eu e Elirya seguimos sozinhos. Em busca do Príncipe do Outono que, de acordo com o Sr. Pelúcia, poderia ser o único portador da magia que poderia derrotar o Rei-Rato. Mas a cada corpo que encontramos no caminho, uma parcela de esperança é debitada de nós.

- Acha que o encontraremos? - Elirya questiona.

Suspiro, encarando as árvores altas como prédios, contornadas pelo manto branco comum da nevasca.

- Nós precisamos.

(661 palavras)

Olá pessoal. Sejam bem vindos ao meu primeiro conto de 2018 para o Realeza BR.

Pela primeira vez estou arriscando um pouco no gênero da fantasia. Espero que gostem :)

Com amor, Carol!

Princesa de PorcelanaOnde histórias criam vida. Descubra agora