1. Miguel

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"Quando a mente não está desejosa de convencer-se, sempre encontra algo para suportar suas dúvidas." - Razão e Sensibilidade, Jane Austen.

Arrependimento. Uma palavra, seis sílabas. E um mundo de sentimentos incluído.

Uma pessoa pode se arrepender por qualquer motivo. Pode fazer uma escolha ruim de profissão, e se arrepender. Pode se arrepender de ir a uma festa. São tantas atitudes que podem gerar um arrependimento!

Miguel tentava não pensar nisso com frequência. Levava sua vida de sempre. Trabalhava o dia todo, saía com os amigos, ficava com algumas garotas ocasionalmente. Havia um certo incômodo lá dentro, mas ele fazia absoluta questão de não pensar nisso, de deixar o incômodo bem guardado a sete chaves. Mas naquele dia esse incômodo estava um pouco mais insistente que o normal. Mesmo ele, um cara que nunca foi ligado em datas, sabia que naquele dia se completavam dois anos daquele que podia ser seu maior arrependimento.

Miguel Ferreira era jovem. Tinha vinte e oito anos, era engenheiro pós-graduado e trabalhava numa multinacional fabricante de automóveis. Queria viver a vida, aproveitar com os amigos, viajar, curtir... Mas às vezes, só às vezes, ele pensava em como toda a sua vida poderia estar diferente agora. E era nesses momentos que aquela dúvida cruel vinha: "Será que eu fiz merda?". Cuidadosamente ele trancava essa pergunta como se seu coração tivesse um cofre bem lacrado. Era melhor não pensar nisso.

Naquela sexta-feira, Gustavo, seu amigo desde a faculdade, mandou uma mensagem chamando-o para tomar um chope. Sexta-feira era sagrado, os dois sempre iam para algum bar para relaxar e, quem sabe, encontrar uma garota. Ele chegou em casa, tomou um banho, vestiu uma calça jeans e uma camisa polo branca, que ele sabia que lhe caía muito bem, e um par de tênis pretos. Um ar jovem e descolado, como ele gostava.

Ele chegou no bar com dez minutos de antecedência e achou que estava mais cheio que o de costume, com uma falação alta fora do normal. Logo percebeu que havia uma mesa lotada, com umas quinze pessoas que conversavam e riam alegremente.

Enquanto esperava Gustavo, pediu um chope e ficou olhando, quase que hipnotizado, para aquela mesa cheia de gente. Não conseguia ver as pessoas que estavam lá, mas também não conseguia parar de olhar. Era uma coisa estranha. Até que viu uma movimentação, uma gritaria e assovios e um silêncio pairou no ar. Um cara tinha se ajoelhado.

"Ah, pelo amor de Deus, ele não vai fazer isso!" - pensou ele, percebendo que aquilo era um pedido de casamento.

Mas era exatamente o que aquele homem ia fazer. O bar todo ficou em silêncio quando todos perceberam o que estava acontecendo. Miguel deliberadamente virou o rosto para o outro lado. Aquilo era ridículo!

― Julia, meu amor, você quer casar comigo? - perguntou o homem. Ao ouvir o nome da mulher, Miguel virou rapidamente em direção ao casal. Não era possível.

― Sim - respondeu a mulher emocionada. Um arrepio percorreu a espinha de Miguel. Ele não conseguia ver os noivos devido ao grande número de pessoas em volta, mas ele reconheceu aquela voz.

Era a voz dela.

Era o seu maior arrependimento.

Ele não conseguia acreditar. Aquele cara não podia estar pedindo a mão da Julia, da sua Julia! Parecia que ele tinha levado um soco na boca do estômago.

Quando Gustavo chegou, encontrou Miguel estático na mesa. Mas não percebeu de cara que tinha alguma coisa acontecendo.

― E aí, cara? - cumprimentou ele sentando na cadeira em frente ao amigo.

― A Julia está aqui - disse Miguel simplesmente.

― Sério? Tem séculos que eu não a vejo. - respondeu Gustavo fazendo sinal para o garçom lhe trazer um chope.

Miguel ficou quieto. Não conseguia falar nada. Ela iria se casar! Mas com certeza não tinha nem dois anos que eles estavam juntos. Que rapidez era essa?

― Será que ela está grávida? - perguntou ele dando voz a seus pensamentos.

― Do que você está falando?

― Da Julia. Será que ela está grávida?

Gustavo olhou para o amigo sem entender nada. Então Miguel lhe explicou o que tinha acontecido antes de Gustavo chegar, todo o pedido com pompa e circunstância.

― Por que ela tem que estar grávida para casar? - perguntou Gustavo.

― Porque é um pouco de repente, você não acha?

― De repente por quê? Tem anos que vocês terminaram - respondeu Gustavo bebericando seu chope que havia acabado de chegar.

― Dois anos, para ser mais preciso.

Foi nessa hora que Gustavo percebeu que havia algo errado com o amigo. Homens não ficam contando esse tipo de coisa.

Os dois ficaram bebendo e conversando quase a noite toda, vendo o movimento de ir e vir das pessoas, mas Miguel estava disperso. Ele simplesmente não conseguia acreditar. Não mesmo. Julia ia se casar! Aquilo ficava na mente dele o tempo todo, como se para lembrá-lo de seu erro, seu grande erro, ocorrido dois anos antes. E naquele misto de emoções um único pensamento se sobrepujava aos demais: "Poderia ser eu. Eu poderia estar me casando com ela".

E foi exatamente durante um desses pensamentos que ela se virou na direção dele e o viu. Miguel não saberia dizer se aquela troca de olhares durou segundos ou minutos inteiros, mas seu corpo todo reagiu a ela. Fazia dois anos que ele não via aqueles olhos castanhos. E de repente ela se virou e lhe deu as costas, como se ele não significasse nada para ela. Aquilo estava tão errado!

Logo ele viu os noivos saindo do bar e indo embora. Ele sentiu uma pressão em seu peito, um aperto. E bebeu, bebeu como se não houvesse amanhã.

ArrependidoOnde histórias criam vida. Descubra agora