4 - Lembranças

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Um violão, uma bateria e um piano tocado à La Jerry Lee Lewis combinavam-se às vozes melódicas do coro para produzir uma versão em ritmo de rock de um velho spiritual. Dados estalavam, pés batiam e os vitrais coloridos, orgulho da pequena igreja local, estremeciam sob o barulho feito em nome de Deus.
Até mesmo os pés de Ford, escondidos sob a túnica preta, acompanhavam a música. Sen¬tado à direita do púlpito, com a Bíblia na mão, uma faixa lilás no peito para simbolizar o arrependimento durante o Advento, ele examinava os fiéis. Seth Taylor, loiro e de olhos azuis, que aos trinta e dois anos ainda não conseguira afastar a ima¬gem de garoto rebelde apesar de ser agora um respeitável ho¬mem de negócios, sentava-se num dos últimos bancos. Ao seu lado estava o filho Jason, de treze anos, que morava com a mãe e visitava Seth nas férias e em fins de semana alternados.
A menos que estivesse muito enganado, percebia indícios de rebeldia de adolescência começando a aflorar no menino. Seria bom convidar Jason para participar de algumas das atividades para jovens. O olhar de Ford pousou sobre o rapaz de dezesseis anos na última fila. Uma menina ruiva e bonita sentava a seu lado.
Na verdade, os dois estavam tão encostados quanto a decência permitia num lugar sagrado. E aí residia o problema desse casal. Jeff Simmons e Megan Blake caminhavam para a maturidade física. Ford suspirou.
Era sua tarefa convencê-los de que a contenção também fazia parte da personalidade de uma pessoa adulta. Se não conseguisse, os dois não tardariam a iniciar suas atividades sexuais. Bastava observá-los para ter certeza disso. A família Simmons fora uma das peças fundamentais na formação da paróquia. David Simmons, diácono por muito tempo, havia morrido uma semana depois de Ford assumir o posto de pastor. Em muitos aspectos, Ford sabia que havia se tornado um pai substituto para Jeff, ajudando-o a superar o sofrimento pela morte do genitor.
Não era tão chegado à mãe de Jeff, porém. Era evidente que sua visão liberal e pouco ortodoxa da religião e da vida confundia Laurel Simmons, uma pessoa que sentia uma verdadeira necessidade de viver de acordo com regras. Muitas vezes imaginara o que ela diria se soubesse que a mãe viúva, Ruth Doege, preparava-se se¬cretamente para juntar os trapinhos com J. C. Hardcastle, o setuagenário tesoureiro da igreja. Sabendo que os dois se gos-tavam e tendo consciência de que um casamento lhes traria embaraços financeiros e legais devido às propriedades que am¬bos possuíam, Ford fizera vista grossa ao romance.
Não era tão presunçoso a ponto de supor qual seria a reação de Deus a respeito, mas não ficaria muito surpreso se soubesse que Ele também preferia preocupar-se com coisas mais sérias. O olhar de Ford começou a percorrer os bancos, a partir do primeiro. Sua observação parou na terceira fila. Ali, em posturas reverentes — bem, três das quatro estavam em pos¬turas reverentes — encontravam-se as irmãs Calloway. Éden, Tess, Jo e... Mariah.
Ela havia prendido os cabelos platinados num coque atrás da cabeça, enfatizando seu perfeito rosto oval e fazendo-a parecer tão atraente quanto uma modelo. O pen¬teado austero também chamava atenção para os três brincos brilhando em cada orelha. Igualmente faiscarem eram seus olhos cor de esmeralda.
Com um movimento discreto, Mariah elevou a mão até o peito e acenou para Ford com o dedo indicador. O sorriso meio amalucado que lhe dirigiu só tinha uma intenção: desfazer a expressão devota de Ford. E conseguiu. Para disfarçar a vontade de rir, Ford abaixou os olhos para a Bíblia. Antes, porém, reparou que Jo, espantada com a ir¬reverência da irmã, dava-lhe uma cotovelada no quadril.
— O que está fazendo? — sussurrou.
— Dando bom dia ao reverendo. O que pareceu?
Jo apenas suspirou. Discretamente, claro. Ford tentou concentrar-se nas últimas notas do hino, mas a loiríssima Calloway sempre se intrometia em suas reflexões. A Mariah tensa da noite anterior dera lugar outra vez à per¬sonalidade travessa com que a conhecera no bar. Sua expe¬riência como psicólogo lhe dizia que ela tentaria provar que o beijo fora um gesto sem maiores significados, um mero jogo de sedução. Mas de modo nenhum conseguiria convencê-lo. Ford sorriu consigo mesmo, pensando que o sermão daquele domingo cairia como uma luva. A música parou. Os membros do coro sentaram-se e Ford dirigiu-se aos fiéis.
— Vou começar com dois anúncios importantes — princi¬piou, com a voz e a atitude relaxadas de alguém que não tinha dificuldade para falar em público.
— Ruth Doege... Onde está você, Ruth? — Todos se viraram para trás. Ruth, sentada ao lado de J. C. Hardcastle, enrubesceu com a atenção de que era alvo.
— Ruth me avisou que as almofadas para os bancos estão prontas e serão colocadas no próximo domingo. Sei que todos vocês unem-se a mim nos agradecimentos àqueles que contribuíram com dinheiro ou trabalho para este projeto. Não há nada na Bíblia dizendo que o homem deve cultuar a Deus em bancos duros. — Risos abafados espalharam-se pela igreja. Mariah sorriu. — E Laurel Simmons soube que as túnicas para o coro estão a caminho. — O aviso provocou uma onda de aplausos. — Nossos agradecimentos para o doador anônimo, por sua generosidade.
Ford pigarreou e fez uma breve pausa, aprontando-se para iniciar o sermão.
— Nesta manhã, gostaria de falar-lhes sobre a farsa. — Seu olhar dirigiu-se para a terceira fila. — Ou, em outras palavras, a maneira como nós, enquanto cristãos e seres hu¬manos, enganamos a nós mesmos.
Mariah franziu a testa. Tinha a sensação de que Ford olhava direto para ela. Trinta minutos depois, Ford encerrava o culto e encami¬nhava-se para a porta. Enquanto os "améns" finais ainda ecoavam, as pessoas já formavam fila do lado de fora para cumprimentar o pastor. Ford recebia a todos com um aperto de mão.
— É um prazer vê-lo, Seth. E você, Jason? Como vai?
— Bem — o garoto murmurou.
— Você gosta de basquetebol?
— Mais ou menos — ele respondeu, com os olhos fixos nos pés, como um típico adolescente encabulado.
— O time da igreja está precisando de mais gente. Eles só jogam nos finais de semana e é mais uma brincadeira, por isso não haveria problema se você tivesse que faltar — Ford acrescentou depressa, sabendo que o menino só vinha para Haughton cada quinze dias. — Que tal pensar no assunto?
Jason deu de ombros, o que poderia não significar nada, mas o experiente Ford notou um breve lampejo de interesse no rosto do garoto e sorriu.
Jeff e Megan saíram com jeito de que procuravam um cantinho sossegado para namorar. Ford gritou para eles.
— Não se esqueçam da festa de pizza esta noite!
— Excelente sermão — cumprimentou uma voz masculina.
— Obrigado, J. C.
— Que tal jantar conosco esta semana? Ford voltou a olhar para a mulher ao lado do tesoureiro. — Ruth vai cozinhar?
— Claro que sim. — J. C. a fitou com um largo sorriso.
— Então eu irei. — O casal desceu os degraus, seguido por vários outros fiéis. Por fim, Laurel Simmons, com um vestido que escondia seus traços bonitos, chegou até o pastor.
— Bom dia, Laurel. Como vai?
— Surda com a música. — Queremos cantar bem alto para Deus ouvir.
— Bem, sem dúvida foi... — O olhar dela pousou sobre a jovem que saía da igreja com três brincos em cada orelha.
Esquecendo o que ia dizer, murmurou uma despedida e co¬meçou a descer os degraus. Ford virou-se. Seus olhos encontraram os de Mariah.
— Oi, reverendo!
— Bom dia, Srta. Calloway.
Como fazia com todos os demais, Ford segurou-lhe a mão. Sentiu um calor delicioso que, por si só, combatia o frio do dia de inverno. De repente, os dois perceberam que haviam esquecido o cumprimento e estavam simplesmente de mãos dadas.
Mariah puxou a sua depressa e enfiou-a no bolso do casaco de pele.
— Éden, Tess, Jo — Ford as cumprimentou, uma por vez. — Que bom vê-las na igreja. — O último comentário foi feito para todas, mas sua atenção havia retornado a Mariah.
— Não fique com a idéia errada, reverendo. Essas três me arrastaram para cá. Só espero que Deus não tenha ficado muito chocado. Odiaria ser responsável por lhe causar um enfarto.
— Se ainda não causou até agora, não seria esta manhã — Jo murmurou.
— Imagino que Deus seja à prova de choques — Ford declarou, com seu sorriso mais atraente.
— E você, reverendo? — Mariah indagou, com o tom de flerte que costumava usar com os homens.
Jo suspirou, Éden enrubesceu e Tess apenas sacudiu a cabeça. Ford riu. Visões de renda vermelha lhe passaram pela mente.
— Digamos que ainda não sofri um enfarto.
Como outros esperavam impacientes para cumprimentar o pastor, as irmãs Calloway tiveram que mover-se. Ford advertiu Tess e Jo, que voltariam para suas respectivas casas naquela tarde, para que dirigissem com cuidado. O Éden, disse que a veria mais tarde.
— E você, Mariah? Vai ficar um pouco por aqui?
— Estou tentando convencê-la — Éden interveio.
— Ainda não sei — Mariah respondeu, dando de ombros.
— Depende de como o vento soprar.
Minutos depois, as quatro entravam no carro de Jo.
— Proponho que almocemos fora — Jo sugeriu.
— Mas já preparei um assado — Éden protestou.
— Guarde-o para depois. Eu voto a favor de comer fora
— Tess opinou.
— Mariah? — Jo a chamou. — Ei, Mariah?
— Hein? — Ela demorara-se um pouco dando uma última olhada para o pastor antes de entrar no banco de trás do carro.
— Qual é o seu voto?
— Sobre o quê? Ei, que tal almoçarmos fora? — Ela sur¬preendeu-se quando viu Jo soltar um suspiro. — Bem, foi só uma idéia. Não precisa ficar brava por isso.
Ford observou o carro afastar-se. Um vento frio atravessou o campo adjacente e varreu os degraus da igreja, agitando-lhe a túnica em torno das pernas. Imaginou, pensativo, se seria aquele o vento que, uma vez mais, levaria Mariah embora de Calloway Corners.
— Você devia mesmo!
Mariah jogou no ar o comentário naquela noite, enquanto ela e Éden, acomodadas no sofá, comiam sanduíches de carne em pratos de papel.
— O quê?
— Ir para a Itália! Conhecer a Capela Sistina!
— Nunca saí de Louisiana — Éden respondeu, sem se sur¬preender por Mariah ter tirado o assunto do nada. Já se acos¬tumara com os repentes da irmã.
— Mais uma razão para você ir à Itália. Ah, Éden, há um mundo inteiro lá fora.
— E como ele é? — O súbito entusiasmo corou as faces de Éden. Por um momento, o rosto que ela costumava consi¬derar sem graça adquiriu uma rara beleza.
— Grande e excitante. — E solitário, Mariah pensou.
De repente, por nenhum motivo especial, lembrou-se de que ouvira Ford falar a dois adolescentes sobre um jantar na igreja naquela noite. Imaginou as pizzas sobre a mesa, as ri¬sadas, o clima de companheirismo. Ford devia ser bom com crianças. Por que motivo não se casara e tivera seus próprios filhos? Como sempre acontecia, a idéia de ter filhos lhe causou um mal-estar. O parto era uma maneira fácil de morrer... e deixava muita culpa atrás de si.
— Há algum lugar onde você nunca esteve? — Éden per¬guntava.
Mariah ficou pensativa. Conhecera desde as planícies quen¬tes e áridas da África até as exuberantes florestas tropicais da América do Sul. Estivera em montanhas e vales, em rios, fiordes e nas tempestades de vento do Oriente Médio. Chegara a percorrer as trilhas geladas do Yukon, junto a uma caravana de comerciantes. Existiria algum lugar onde nunca estivera? De repente, a letra de uma música lhe veio à cabeça, uma canção que falava sobre ter estado em toda parte, até no paraíso, mas nunca dentro de si mesma. Sim, Mariah pensou, nunca viajara para dentro de seu próprio ser. E por quê? Talvez porque houvesse muita culpa e medo lá no fundo.
— Se tem que pensar tanto, é porque não há nenhum lugar. — Éden sorriu, invejando o espírito aventureiro da irmã.
— Como ela era?
Embora estivesse acostumada às súbitas mudanças de as¬sunto de Mariah, Éden foi pega de surpresa com a pergunta.
— Quem?
— Mamãe.
— Ela era... — Éden tinha oito anos quando a mãe morrera. Pensou por um momento, tentando encontrar a palavra certa.
— Ela era suave. Tudo nela era suave. Os cabelos, os olhos, a voz, o toque, o abraço... E sempre tinha um perfume tão bom. Fazia doces deliciosos. E adorava as glicínias no jardim. Foi por isso que papai quis plantar um canteiro de glicínias no túmulo dela no cemitério.
— Ele nunca mais foi o mesmo, não é?
— Não. Quando se perde uma pessoa muito amada, nunca mais se pode ser o mesmo outra vez.
E nem se pode amar quem matou esse ser tão querido, Mariah pensou, perdendo o apetite. Colocou o prato sobre a mesinha de café, calçou os velhos chinelos de Mickey Mouse que pareciam ridículos numa mulher da sua idade e caminhou até a janela. A noite era negra e o frio tentava forçar entrada por cada brecha. Da mesma maneira como a indiferença emocional de seu pai forçara entrada em cada brecha de seu coração. Mesmo assim, Mariah o amara. A lembrança de Ben Calloway foi substituída de repente por Ford Dunning. Como de hábito, Mariah não procurou as. razões. Apenas pareceu-lhe importante ter sido Ford o pastor que oficiara o enterro de seu pai.
— Decidi ficar um pouco por aqui — anunciou num im¬pulso.
— E mesmo?
— Acho que sim! — Mariah virou-se para a sala e viu os olhos de Éden encherem-se de lágrimas. — Mas vou precisar de um emprego.
— Pode trabalhar na madeireira. Ah, Mariah, eu nem acre¬dito! Achei que você não fosse concordar. Já lhe pedi que ficasse centenas de vezes antes. Por que tomou essa decisão agora?
Por quê? Honestamente, Mariah não sabia. Talvez porque, pela pri¬meira vez em sua vida, sentia uma necessidade de volta ao útero, intuía que chegara o momento de parar de correr o mundo e olhar para dentro de si mesma. Ou talvez porque outro aniversário se aproximava, insuflando seu antigo medo de morrer jovem. Quem sabe resolvera ficar por causa de um par de mãos quentes, fortes e protetoras. Ou a resposta poderia ser tão simples quanto a que deu à irmã.
— Devo algum dinheiro a um homem.
O quilômetro dali, num pequeno mas confortável trailer, Ford procurava um comprimido para o estômago, imaginando se estaria com princípio de úlcera. Bem que se habilitara a uma.
O único adjetivo para descrevê-lo era intenso. Mas o engraçado na palavra "intenso" era que, mais cedo ou mais tarde, a parte in saía voando pela janela e o deixava apenas com tenso. Sempre fora assim, e cada vez pior. O padrão normal para um filho de pastor era ser rebelde e criador de confusões. Ele não fora exceção.
Conhecera mais salas de diretoria no colégio do que muitos dos professores. Depois de se formar, inscrevera-se para o exército, contra à vontade do pai, o que, claro, só tornava a idéia ainda mais atraente. Assim que terminara o treinamento, fora mandado para o Vietnã. E lá sua vida mudara...
Duas vezes.
Ainda se lembrava do cheiro dos esgotos abertos, da lama negra, da pólvora. E recordava-se do intenso choque cultural que experimentara. Em poucos dias, percebera como sua vida havia sido protegida até então. O testemunho de tantas mortes e destruição o fez colocar era perspectiva sua rebeldia e suas estúpidas travessuras juvenis.
A guerra teve outra conse¬qüência também: deu um golpe mortal em sua fé, levando-o a concluir que não havia Deus, ou que Ele não tinha controle sobre nada. Na melhor das hipóteses, se Deus existisse, deveria estar rindo muito daquela piada chamada Vietnã. Sentindo que seu pai fora muito ingênuo ao se dedicar à religião, Ford va¬cilara entre ser ateu ou ficar furioso com Deus. A sensação de vazio extremo durara quase seis meses.
Até que... Ford colocou dois comprimidos efervescentes num copo d'água e deixou que o som borbulhante afastasse lembranças que, quase vinte anos depois, ainda eram dolorosas.
Como sempre, porém, as recordações insistiram em permanecer, como nuvens cinzentas num dia de chuva. Com o copo na mão, Ford caminhou pela mínima sala e, sem que premeditasse, seus pés o levaram à fotografia na estante. Ele fitou o retrato que, ironicamente, fora tirado apenas minutos antes de sua vida alterar-se para sempre. Eram dois homens e uma mulher num bar em Saigon. Um tio homens era o próprio Ford, o outro era um de seus colegas do exército.
Ambos de cabelos curtos, uniforme verde e sorrisos bobos. A mulher era vietnamita, de cabelos e olhos escuros, linda. Ford a abraçava pela cintura. Ela o fitava, com imensa ternura. MeiLee, o nome ainda o perturbava, como todos os sonhos desfeitos. A mão de Ford moveu-se até o ombro, onde percorreu a cicatriz sob a camisa amassada. Não havia maneira, porém, de aliviar a ferida em seu coração. Engoliu o conteúdo do copo, espe¬rando que os comprimidos resolvessem ao menos a dor em seu estômago. Ford saíra mudado daquele bar de Saigon.
Carregado numa maça, inconsciente, mas outro homem. Testemunhara um perfeito e altruísta gesto de amor que penetrara até o fundo de seu coração descrente. Certamente apenas Deus poderia criar um sentimento tão puro e sem egoísmo. Voltara para casa com uma meta: formar-se em psicologia, um assunto que sempre o fascinara. Estudando com afinco, terminara o curso de graduação e obtivera graus de mestre e doutor antes de integrar o quadro de profissionais do Hospital de Veteranos em Shreveport, onde trabalhara com veteranos de guerra com problemas emocionais e mentais. Em algum ponto do caminho, começara a lidar com viciados em drogas, prostitutas, homossexuais, qualquer um que precisasse de aju¬da.
Mais e mais, começara a trazer essas pessoas perturbadas para o caminho de sua fé tão simples, baseada no mero conceito de que "Deus é Amor". Passara a freqüentar cursos sobre a Bíblia, por puro prazer. Dois anos atrás, seu pai lhe pedira para substituir temporariamente um amigo pastor que, devido a problemas de saúde, precisara deixar suas funções na pequena paróquia de Haughton. Ford sorriu. Ainda lembrava-se de sua surpresa diante da solicitação do pai.
— Deve estar brincando. Não sou pastor.
— Tem certeza disso, filho?
Utilizando o conselho do pai de "falar com simplicidade e para o coração", Ford subira ao púlpito pela primeira vez e não o abandonara mais. Exceto por umas poucas pessoas como Laurel Simmons, que o julgavam liberal demais, a paróquia o aceitara.
Entre os inúmeros compromissos pastorais, porem, Ford jamais abandonara seu trabalho de aconselhamento psi¬cológico. Muitas vezes desejava que o dia tivesse mais de vinte e quatro horas, para que pudesse dar conta de todas as obrigações. Sabia que trabalhava demais, quase ao ponto do colapso, mas tinha discernimento suficiente para compreender os próprios motivos. Tentava justificar o fato de ter sobrevivido quando duas outras pessoas haviam morrido.
Procurava ser merecedor de alguém ter sacrificado a vida por ele. Ford suspirou e retornou à escrivaninha atulhada de papéis. Sentou-se, largou o copo e verificou o relógio. Eram dez e quinze e ele ainda tinha milhões de coisas para fazer naquela noite.
Passando a mão pelos cabelos, fechou os olhos e forçou a mente a relaxar, a esquecer o passado, a eximir-se de res¬ponsabilidades e obrigações. Em vez disso, procurou pensar em algo agradável. Sem hesitação, surgiu a imagem de Mariah Calloway, com seus cabelos cor do luar e de bancos de neve, com sua voz como o vento. Mariah Calloway, que, a menos que estivesse muito enganado, era uma grande farsa.

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Espero que estejam gostando!

MARIAH - Quatro Destinos 1Onde histórias criam vida. Descubra agora