6 - Tentação

9 1 0
                                    

Ford terminou de ler a questão que estava corrigindo e levantou os olhos. Mariah, acomodada no sofá com os pés protegidos por meias brancas com detalhes em renda quase infantis, conferia as respostas dos testes de múltipla escolha e depois passava as provas a Ford para que ele avaliasse as perguntas dissertativas. Formavam uma equipe eficiente. Faziam progressos, apesar de todas as provocações e brincadeiras que a situação e o estado de ânimo de Mariah ocasionavam. Na verdade, ela se encontrava em sua melhor forma, Ford admitiu, examinando-a uma vez mais.
Vestia-se toda de branco:a calça de brim, o suéter colante, os sapatos de salto, o lenço no cabelo e os dois pares de brincos grudados às orelhas.  Parecia a pureza personificada.
— Ford, você tem certeza disto aqui? — Mariah franziu a testa ao ver que ele a fitava por sobre os óculos de aro preto.
— Quantos anos você tem?
Já acostumado com as súbitas mudanças de assunto, Ford, apenas sorriu e acomodou-se melhor na cadeira diante da es¬crivaninha.
— Qual pergunta quer que eu responda primeiro?
— Sua idade.
— Trinta e oito. — Trinta e oito? Não é mesmo incrível o que se faz hoje cm dia para os mais velhos em termos de óculos bifocais?
Ford sorriu, desejando não enxergar tão bem, com ou sem bifocais. O suéter branco moldava-se às suas curvas com per¬feição e a calça branca agarrava-se aos quadris arredondados.
Pela primeira vez, compreendeu a verdadeira provocação pela qual Adão passara no Jardim do Éden quando Eva começara a tentá-lo. Nunca mais seria tão rápido em apontar um dedo acusador para o pobre homem.
— Na verdade — ela prosseguiu —, acho que os óculos o deixam bastante autoritário, sério, muito profissional, muito...
— Sexy — os dois completaram juntos e começaram a rir.
— Você só diz isso para consolar um velho homem.
— Certo. Temos que ser bons para os mais velhos.
— Mas sobre o que você queria saber se eu tinha certeza? — ele indagou, voltando para a questão que iniciara a conversa.
— É melhor perguntar logo, enquanto meu cérebro idoso ainda está funcionando.
— Tem certeza de que os dedos dos pés são uma zona erógena?
— Tenho — Ford respondeu, pegando a prova seguinte para corrigir.
— Bem, sé você diz com essa autoridade...
— Dedos dos pés são uma zona erógena — ele tornou a assegurar, com os olhos atentos no teste que continuava a avaliar.
— Eu não sabia disso, reverendo. — É uma pena que tenha escolhido parceiros desinformados. Ele aprendera que o único modo de lidar com Mariah Calloway era entrar no jogo dela e, portanto, a provocava no mesmo tom. No fundo, porém, não achava muito agradável fazer piadas em relação a amantes que ela houvesse tido.
Desinformados ou não. Mariah esticou uma das pernas e mexeu os dedos
— Diga-me, reverendo, já beijou os dedos do pé de alguma mulher?
Ford pareceu não ter sido afetado pela pergunta. Ergueu xícara e bebeu um gole de café.
— Nenhum dedo de mulher que eu queira discutir com você agora.
— Ah, vamos, beije e me conte. Ele a fitou por sobre os óculos.                                     
— Gostaria de lembrá-la que estas provas precisam ser corrigidas hoje.
— Você quer dizer que, se neste momento, resolvesse beijou meu dedo do pé...
— Não vamos sair daqui enquanto não terminarmos.
—... Eu entraria num estado extasiante de excitação sexual?
Ford amassou um pedaço de papel e atirou-o nela.
— As provas, Mariah! Rindo, ambos voltaram ao trabalho.                              
— Quem é Jeff Simmons? — Mariah perguntou uma hora mais tarde. Àquele era o último dos cento e sete testes a serem corrigidos.                                                                        
— Por quê? — O nome do garoto despertou a atenção de Ford.
— Ele calculou perfeitamente os dias férteis de uma mulher de acordo com o método cíclico, coisa que metade dos alunos erraram, mas não sabia que uma mulher pode ficar grávida mesmo sem ter orgasmo. — Ela franziu a testa, mostrando preo¬cupação. — Ei, a gente pode ficar grávida sem orgasmo, não é? Isso não é como os dedos... Que me enganaram até hoje?
O fato de Ford ter ignorado a provocação alertou Mariah quanto à sua mudança de humor.
— Deixe-me ver o teste — pediu. Em silêncio, Ford analisou a prova de cinco páginas.
— Isto é exatamente o que venho tentando dizer a todos sobre essas crianças! Por um lado, eles sabem coisas que eu só aprendi muito mais velho mas, por outro, ainda acreditam cm muitas informações incorretas que ouvem na rua. Você tem razão. Jeff sabe calcular muito bem o período fértil da mulher, mas acha que sairá livre de qualquer responsabilidade se ela não tiver orgasmo. Ah, mas que beleza! — Ele apoiou a testa numa das mãos e começou a massageá-la, com evidente aborrecimento.
Mariah levantou-se do sofá e, sem questionar seus atos, aproximou-se para confortá-lo.
— Eu sinto muito — murmurou, massageando-lhe os om¬bros tensos com seus dedos longos e finos. Ford soltou um suspiro. Seu corpo cansado bem que pre¬cisava daquele prazer.
— Essas crianças me deixam louco. Ou melhor, os pais delas me deixam louco. Para ser justo, não são todos, mas alguns dos pais me tiram do sério.
— Como assim?
— Alguns pais, entre eles a mãe de Jeff, que participa das atividades da igreja, acham que, ensinando sexo responsável, eu incentivo a promiscuidade.
— O ensino de métodos de evitar a gravidez os incentiva a experimentar?
— Isso mesmo. Imagine só se eu mencionasse preservativos masculinos, cremes espermicidas ou pílula!
— Achei que os pais deviam estar com medo da Aids e que desejassem ver seus filhos bem informados.
— Mariah, alguns pais vivem satisfeitos enterrando a cabeça na areia. Para eles, a Aids existe, mas nunca se aproximará de seus filhos. E a filhinha deles jamais ficará grávida por desinformação e seus garotos nunca engravidarão nenhuma namorada. Isso só acontece na casa dos outros. Ei, o que está fazendo? — Ford fechou os olhos, desfrutando a deliciosa sensação do polegar de Mariah massageando sua nuca.
— Alguém já lhe disse que você é tenso? Talvez tenham tentado, mas ando ocupado demais para ouvir. Mariah riu e fez um movimento extremamente agradável com seus polegares atrás das orelhas de Ford.
— E quanto ao pai de Jeff? — indagou, retomando o assunto.
— Ele morreu dois anos atrás.
— E você o tem substituído, certo? — Mariah adivinhou. Havia notado o interesse de Ford assim que mencionara o nome do rapaz.
— É, acho que poderíamos dizer isso. E um grande garoto. Qualquer homem teria orgulho de um filho como ele.
— E, então, você vai continuar ensinando educação sexual para os Jeff Simmons do mundo.
— E para as Megan Blake. E a namorada dele — Ford explicou. — Só espero falar mais alto do que os hormônios dos dois.
— Ah, entendi. Eles já podem estar começando, não é?
— Ou pelo menos pensando nisso. E tenho que lhes mostrar que o sexo, como tudo o mais na vida, tem um preço a ser pago. Ser sexualmente ativo requer a aceitação de certas res¬ponsabilidades. Ah, Mariah, isso é tão bom! — ele suspirou.
As mãos de Mariah desceram uma vez mais para os ombros, massageando-os em movimentos circulares. Ford inclinou a cabeça para a esquerda, dando-lhe mais espaço para trabalhar e sentindo o ritmo cadenciado dos dedos em seus músculos tensos.
Deixou que o prazer lhe penetrasse a carne, limpando a mente de tudo e atendo-se apenas às sensações. Percebia o quente pulsar do toque de Mariah, os fios de cabelo dançando em sua nuca exposta, o ocasional roçar dos seios em suas costas. Nenhum daqueles movimentos, em contraste com quase tudo que ela fizera durante a noite, era calculado.
E mostra¬vam-se muito mais excitantes do que a premeditada forma de sedução que ela costumava utilizar. Aos poucos, o prazer da massagem foi se transformando em algo mais intenso. Mariah também descobria novas sen-sações ao tocar os músculos firmes, os cabelos que se encaracolavam levemente na nuca, a pele macia do pescoço. Ima¬ginou, de repente, se a nuca seria outra zona erógena. Suas mãos pararam.
Ford pegou o lápis que havia caído de seus dedos.
Seus olhares se encontraram.
— Eu, hã... — Ele pigarreou. — Preciso terminar de corrigir as provas.
— Sim, claro. — Mariah recuou e prendeu os polegares nos bolsos da frente da calça branca. Seus dedos ainda for¬migavam do contato com a pele quente de Ford.
— Só vou demorar mais uns dez ou quinze minutos.
— Não se preocupe. Eu... Vou fazer um chá.
— A chaleira...
— Eu sei. — Mariah caminhou até a cozinha. — Quer mais café?
— Não. Já tomei cafeína demais por uma noite.
Enquanto Ford tentava concentrar-se nos poucos testes que faltavam, Mariah preparou seu chá e retornou à sala, bebendo-o cm pequenos goles. Parou junto à estante, atrás de Ford, e começou a examinar os objetos, apenas para fazer hora.
Aca¬bara de recolocar sobre a prateleira a foto dos pais de Ford quando um outro retrato lhe chamou a atenção. Eram três pes¬soas sorridentes: dois homens em fardas militares, um deles o próprio Ford muito jovem, e uma mulher.
Uma linda mulher vietnamita, que fitava Ford com indisfarçável afeição. O braço dele lhe envolvia a cintura com familiaridade. Nesse instante, Ford soltou um suspiro e tirou os óculos, largando-os sobre a mesa.
— Vou terminar mais tarde — declarou, empurrando a ca¬deira e levantando-se. Arregaçou as mangas da camisa e virou-se. Parou ao ver Mariah com a fotografia nas mãos. — Você... Esteve no Vietnã?
— Sim. Em 1968.
— Eu era uma criança nesse tempo.
— Eu também.
— Você... Conheceu este rapaz lá? — Sem saber bem por que, Mariah evitara mencionar a mulher.
— Sim. Estávamos na mesma unidade.
— Ele... Parece legal.
— É.
— Vocês todos continuaram mantendo contato?
— Ele está morto. — Por longos momentos, ninguém disse nada. Por fim, Ford rompeu o silêncio. — O nome dele era Bill Michaels. Nós três, Bill, Mei-Lee e eu... — Ele fez uma breve pausa.
Mei-Lee, Mariah pensou. Um nome bonito para uma linda moça. Uma linda moça que estivera apaixonada por Ford.
— Nós estávamos num bar em Saigon. Alguém jogou uma granada pela janela. Bill atirou-se sobre ela para salvar Mei Lee e eu. — Ele contava como se fosse um caso banal, o que só servia para destacar ainda mais as emoções sombrias que o assunto, na verdade, devia lhe inspirar. — Ela... Ela morreu assim mesmo. Fui o único a sobreviver.
Ford não mencionou que se jogara sobre Mei-Lee, mas isso não fora suficiente para salvá-la. Também não falou dos dois meses que passara no hospital militar para se recuperar dos ferimentos. Segundos de silêncio se escoaram, incômodos.
— É um pouco assustador saber que alguém deu a vida por você, não é?
Assustador. Não era bem a palavra que ele escolheria, mas aplicava-se.
— Sim, é assustador.
Compreensão, pura e simples, transmitiu-se entre olhos es¬meralda e âmbar. Um tipo de compreensão que nenhum dos dois jamais havia experimentado com qualquer outra pessoa e que, de certa forma, aliviava um pouco a carga que ambos carregavam.
Pareceram um pouco surpresos em descobrir isso. Foi Mariah quem rompeu a atmosfera séria, como se con¬siderasse esgotada sua cota de sobriedade para aquela noite.
— Bem, reverendo, meu vale está pago?
— Por completo. Assim que eu a entregar em casa.
— Me lamento não ter podido vir no carro de Éden. — ela desculpou-se uma vez mais.
— Sem problemas. — Ford vestiu uma jaqueta de couro ocre e pegou o casaco de pele sobre o sofá.
Mariah recolocou a foto na prateleira, consciente de que fora proposital o fato de não ter perguntado sobre o relacio¬namento entre ele e Mei-Lee. Na verdade, não queria ouvir a resposta. Enfiou os braços nas mangas do casaco, jogou os longos cabelos platinados para trás e sorriu.
— Você me deixaria dirigir aquele seu carrinho esporte? — Mariah riu, com uma vivacidade talvez um pouco excessiva, quando Ford tirou as chaves do bolso da calça e as jogou para ela. — Vamos lá, reverendo, viver perigosamente.
O carro pôs-se em movimento pela estrada, deixando atrás de si uma nuvem de terra avermelhada. Mudando marchas e lidando com os pedais como uma profissional, Mariah dispa¬rava como vento pela estrada sinuosa e escura.
Sentado em silêncio e com uma postura tão tranqüila quanto se estivesse na cadeira diante da escrivaninha, Ford via o pon¬teiro do velocímetro subir. Cento e dez... Cento e vinte...
Cento e vinte e cinco quilômetros por hora.
Ele fitou Mariah. Havia um sorriso dançando em seus lábios e um brilho de pura agi¬tação nos olhos verdes. Agitada e impaciente. Fora assim que ela ficara desde o momento de seriedade no trailer, quando nas entrelinhas, fa¬lara sobre a morte da mãe. Ford percebera sua mudança de atitude. Notara também que ela não havia perguntado sobre Mei-Lee, embora fosse evidente a curiosidade.
Por que seria? Pensou um pouco no assunto, enquanto o velocímetro oscilava entre cento e trinta e cento e trinta e cinco, mas logo chegou à conclusão de que aquele não era o momento ideal para re¬flexões.
— Que maravilha! — Mariah exclamou, radiante. — Dirigi num Grand Prix uma vez.
— Matou alguém?
— Não — Mariah respondeu, rindo. — Mas também não ganhei. Na verdade, fiquei em penúltimo lugar, mas me diverti muito. Estava pilotando o carro de um amigo. Nick tinha que¬brado a perna e não podia competir.
— Nick? — Ford não pôde evitar a pergunta.
— Sim. Nick Logan.
Ela esperou uma continuação da resposta, mas não veio mais nada. Dessa vez, porém, conteve a curiosidade. Não era de sua conta o tipo de amizade que havia entre esse Nick Logan e Mariah. No entanto, e não compreendia por que, sen¬tia-se como se fosse muito de sua conta. Mariah fez uma curva fechada sem reduzir a velocidade e sorriu diante do desempenho do carro.
— Não acredito que esta máquina seja de um pastor!
— Laurel Simmons, a mãe de Jeff, diria a mesma coisa.
— Mas aposto que você não dá a mínima para o que Laurel Simmons pensa, certo?
— É, acho que não. Nunca li na Bíblia que um pastor não pode dirigir um carro esporte.
Mariah aproximou-se de casa na mesma alucinante veloci¬dade. Com grande perícia, reduziu a marcha e estacionou em frente à varanda. Desligou o motor, apoiou o braço no encosto do banco e virou-se para Ford antes que o mundo tivesse tempo de assentar-se em tomo deles. Ainda mantendo a postura indiferente e calma, Ford apreciou o brilho de prazer nos olhos dela.
— Divertiu-se? — ele indagou.
— Muito. E você?
— Digamos que me sinto bem mais mortal.
Mariah riu. Diante dos olhos atentos de Ford, a expressão de pura diversão foi adquirindo tonalidades sensuais.
— Diga-me uma coisa, Ford Dunning. Vai me dar um beijo de boa noite?
— Quer que eu faça isso?
— Você quer que eu queira?
— Sou psicólogo há anos, mas nem eu tentaria analisar isso. Já lhe disseram que você responde perguntas com per¬guntas?
— É mesmo? — Ambos sorriram, mas Mariah logo projetou os lábios sensualmente e passou a unha vermelha pela manga da jaqueta dele. Um gesto deliberado, provocante. E, apesar do couro, Ford sentiu o toque com intensidade. — Bem, você sabe que, se não me beijar, eu serei forçada a beijar você.
— Isso parece... Interessante.
— Está forçando a situação? — Ela sorriu, atrevida.
— Quem sabe?
— Talvez você encontre profundas implicações psicológicas se eu não cumprir o que prometi — murmurou, inclinando-se para frente e subindo o dedo pela curva do ombro de Ford.
— Talvez.
— Mas, ao mesmo tempo, talvez encontre profundas im¬plicações psicológicas se eu for em frente.
— Talvez.
Lentos, sensuais, os dedos de Mariah o seguraram pela gola da jaqueta e o puxaram para si.
— Então analise isto, reverendo.
Os lábios dela eram doces, macios e... calculados. Mantendo controle total. Desceram provocantes sobre os de Ford, mas com uma irreverência estudada. Quando ela se afastou, sua respiração nem sequer estava alterada. Os olhos brilham, não de paixão, mas de divertimento.
— E então, o que achou? — Mariah murmurou, como uma sereia sedutora.
— Vou lhe mostrar o que achei. Agora é minha vez. Antes que Mariah percebesse o que acontecia, Ford a puxou para seus braços e tomou-lhe os lábios nos seus.
O beijo foi igualmente calculado. Só que, dessa vez, o con¬trole era de Ford. E ele tinha uma única meta: acabar com o jogo de Mariah. Seus lábios a roçaram, acariciaram, explora¬ram, enquanto as mãos subiam-lhe pelas costas, trazendo-a para mais perto. Mariah viu-se, de repente, envolvida pelos braços de Ford, o peito dele de encontro ao seu, os lábios...
Ah, os lábios! Um pastor não deveria saber beijar daquele jeito. Um pastor tinha que ser chato, entediante e assexuado. Não deveria saber qual o ângulo exato das bocas que deixava o corpo em brasas.
Gemeu quando a língua dele penetrou-lhe os lábios, mais ousada do que o pecado, provocando-a, incitando-a a retribuir as carícias. Mas Mariah teve medo do controle que ele adquiria sobre seus sentidos, da maneira como rompia as defesas que ela não queria baixar! Tentou soltar-se dele.
— Não — Ford murmurou, segurando-a junto de si. — Chega de brincar de beijos, Mariah. Agora vamos fazer a sério.
Enfiando uma das mãos no emaranhado dos cabelos dela, Ford tornou a beijá-la, transformando sua língua uma vez mais em rápida e irresistível invasora, explorando o interior úmido e macio da boca de Mariah. Incapaz de resistir ao calor que se espalhou por seu corpo, Mariah gemeu e respondeu às carícias, com uma intensidade que chegou a surpreendê-la.
Entregando-se às próprias neces¬sidades mais profundas, uniu sua língua à dele, acompanhando a dança apaixonada, como se quisesse tirar o máximo da in¬timidade que ele lhe oferecia. De repente, Ford suavizou o contato e, aos poucos, trans¬formou a fúria sensual em doces carícias.
Quando, por fim, levantou a cabeça, o beijo havia ficado quase casto. Mariah o fitou, ofegante. Parecia espantada, como se tivesse perdido uma parte de si própria e não soubesse mais onde procurá-la.
Ford sorriu consigo mesmo. Embora ainda não tivesse con¬seguido vislumbrar a mulher que se escondia atrás da porta fechada, sem dúvida girara a chave na fechadura. Mariah não conseguia esquecer o beijo. Por mais que se esforçasse, ele continuava atormentando seus sentidos.
Havia beijado outros homens, muitos homens. Mas o beijo de Ford tinha sido... Diferente.
Vários dias se passaram sem que tornasse a vê-lo. O trabalho na madeireira e os preparativos para o Natal ocupavam boa parte de seu tempo. A princípio, por causa da morte recente do pai, ela e Éden haviam decidido não decorar a casa. Uma noite, porém, Éden arrumara algumas velas perfumadas e ra¬mos frescos de azevinho sobre a lareira.
Mariah pendurara um arranjo de flores na porta na noite seguinte. Dois dias depois, aparecia em casa com um pinheirinho, alegando que não re¬sistira à tentação de comprá-lo. Ela e Éden passaram a noite enfeitando a árvore com ornamentos de que se recordavam de usarem desde os primeiros Natais de suas infâncias.
Mariah recordava-se também de um beijo. E perguntava-se por que Ford não telefonava.
Um a um, os presentes começaram a aparecer sob a árvore. Dois dias antes do Natal, Nick Logan, um velho companheiro ocasional nas viagens pelo mundo, ligou para desejar-lhe boas lestas e para avisar que talvez passasse para visitá-la nos pri¬meiros dias do ano... Se ela ainda fosse continuar em Calloway Mariah surpreendeu a si própria ao garantir que per¬maneceria ali.
Disse também que estava com saudades.
Saudades. Estaria com saudades de Ford? Não. Como poderia ter sau-dades de um pastor chato e entediante? Só que, na verdade, ele podia ser tudo, exceto chato e entediante.
Na véspera do Natal, as outras duas irmãs chegaram em casa. Tess, silenciosa e exibindo uma falsa coragem em relação a seu divórcio que se aproximava de uma resolução final. Jo, com um ar prático e decidido de quem desejava acabar logo com aquela história de Natal e voltar ao trabalho. Naquela noite, Mariah viu Ford. Mas apenas isso.
A igreja, conforme a tradição, organizou a Ceia do Senhor, uma celebração de Natal à meia-noite. As quatro irmãs com¬pareceram. Velas acesas iluminavam os vitrais coloridos e flo¬res vermelhas decoravam o altar, doadas pela comunidade. Duas das plantas haviam sido oferecidas em memória de Grace e Ben Calloway.
Quando Ford, usando uma túnica preta e uma faixa branca representando a pureza, tomou assento diante dos fiéis, seus olhos buscaram logo os de Mariah. Ela pensou em acenar com os dedos, mas não o fez. Em vez disso, apenas deixou que seu olhar repousasse longamente no dele. Durante o breve sermão, Ford evitou fitá-la, como se tivesse receio de que a visão dos cabelos platinados e dos lábios vermelhos o fizesse perder a concentração.
Minutos depois, fila por fila, os fiéis caminharam até o altar para receber a comunhão. Mariah recebeu do diácono o cálice de suco de uvas. Quando Ford parou diante dela com um recipiente, abriu a boca para aceitar o pão simbólico. Seus olhares se encontraram por um breve instante.
No de Ford, Mariah viu completa devoção, sincera paixão pelo Deus a que ele servia. Sem dúvida, de¬dicaria uma paixão igualmente pura à mulher que amasse. A idéia a aqueceu por dentro... e perturbou-se ao mesmo tempo, pois ele iria exigir o mesmo amor puro e apaixonado em troca. No fim do serviço, Ford tentou aproximar-se dela, mas as freqüentes interrupções de fiéis querendo cumprimentá-lo desejar-lhe boas festas o impediram.
Embora já houvesse pas¬sado de uma hora da manhã quando elas chegaram em casa, Mariah tinha certeza de que Ford iria telefonar. Mas ele não ligou. O dia de Natal amanheceu com um frio intenso e um vento cortante.
Depois de abrirem os presentes e almoçarem peru com todas as guarnições tradicionais, Mariah viu as três irmãs retirarem-se para descansar e resolveu sair. Tinha que fazer alguma coisa para aliviar a extrema agitação, e caminhar talvez fosse uma boa medida. Além disso, queria ver o lago. Ao longo dos anos, sempre se dirigira àquele lugar quando a vida parecia pesar demais. Enquanto Mariah caminhava pelo bosque silencioso e frio, Ford, na casa dos pais, baixava o garfo sobre a mesa.
— Não vá me dizer que já terminou! — espantou-se sua mãe, Jessie.
— Você nunca acha que eu comi o suficiente — Ford co¬mentou, sorrindo.
— É. Deve fazer parte do instinto materna.
— Bem, então diga a seu instinto maternal que estou sa¬tisfeito. — Ele empurrou a cadeira da modesta sala de jantar, levantou-se e caminhou até a mãe. Inclinou-se para beijar-lhe o rosto que permanecia sem rugas, apenas dos sessenta e nove anos de idade. — Estava uma delícia, mamãe. Quer que eu ajude com os pratos?
— Não, querido. — Jessie virou-se para o marido. — John, tire o menino daqui.
Ford sorriu. Já aceitara a idéia de que seus pais nunca dei¬xariam de vê-lo como um menino.
— Vamos filho. — John Dunning chamou Ford para a saleta ao lado. — Sua mãe fica impossível se não a deixamos fazer as coisas do jeito dela.
John Dunning continuava alto e com ombros pouco curvados Tara seus setenta e dois anos.
Os cabelos fartos revelavam apenas alguns reflexos grisalhos. Poderia ter se aposentado anos antes, mas não queria nem ouvir falar nisso. E Ford sabia que Deus teria dificuldade para substituir aquele servo leal. Poucas pessoas tinham o coração tão puro quanto John Dunning.
— Você parece cansado, filho. Ford sentou-se no sofá, diante da poltrona do pai, e passou a mão pelos cabelos.
— Este período de festas é difícil.
— Eu sei. Mas, além de tudo, você mantém as sessões de aconselhamento. Fica com trabalho duplo, não é?
— Eu estou bem.
Ford começou a pensar nas numerosas tarefas que tivera nos últimos dias. O período de festas, além de normalmente agitado, causava depressões sérias a muita gente.
Como ele sempre fazia questão de mostrar-se acessível, seus pacientes não hesitavam em procurá-lo. Convencera uma mulher a de¬sistir do suicídio e tentara fazer ver a vários outros pacientes que a vida não era um poço negro de angústias e desespero. Oferecia-lhes esperança, forças para recomeçar. Mas o desgaste emocional acabava pesando para Ford e a adição de toda uma série de pequenos aborrecimentos tornava-o candidato poten¬cial a uma úlcera.
O primeiro aborrecimento transcorrera na noite do jantar com Ruth Doege e J. C. Hardcastle. Vira ali duas pessoas que deveriam estar casadas. Eles se amavam e tratavam-se com imenso carinho. No entanto, não podia forçá-los a uma atitude que ambos não desejavam tomar.
Mas ouvira com atenção quando eles sugeriram programas mais interessantes para os idosos na igreja. Pelo visto, nem todas as pessoas de idade satisfaziam-se em passar a vida jogando bingo.
O segundo aborrecimento surgira quando Jason, o filho ado¬lescente de Seth Taylor, não compareceu a nenhum dos treinos de basquetebol. O terceiro nascera de forma inesperada, quando um dos vigilantes acertados para o baile do ano-novo no colégio desistira de repente, apesar de se ter oferecido como voluntário inclusive para recrutar outros vigilantes.
O quarto aborreci¬mento viera quando o doador anônimo das túnicas para o coro tivera que retirar sua generosa oferta devido a um imprevisto problema financeiro.
A má notícia surgira depois que as roupas haviam chegado e enchido de orgulho todos os membros da igreja. Ford não sabia como lhes contar que os trajes, ainda nas caixas, teriam de ser devolvidos.
— Humano.
Ford voltou a atenção para o pai.
— Desculpe, pai. O que disse?
— Disse para você ir com calma e lembrar-se de que é humano,
Ford sabia disso muito bem. Sentia-se cansado, com um milhão de coisas para fazer, mas não podia parar e descansar. Não podia, porque pessoas haviam morrido para que ele so¬brevivesse. Um amigo lhe dera a vida, e agora era a vez de ele se entregar por completo aos outros. Ah, mas estava can¬sado...
Começou a imaginar as mãos de Mariah massageando-lhe os músculos doloridos, os lábios dela derretendo-se de encontro aos seus, os olhos de pura esmeralda que, num único instante, conseguiam aliviar-lhe a fadiga.
Humano? Sim, ele era humano! Mariah o fazia conscientizar-se disso em cada milímetro de seu corpo masculino.
— Vou ver se sua mãe precisa de alguma coisa. Volto já. Ford olhou para o relógio. Eram três horas da tarde.
— Posso usar o telefone?
— Claro. Ford caminhou até o escritório do pai e discou o número que sabia de cor. Ouviu o toque do outro lado, ansioso.
Rezava para que ela estivesse em casa, pois sentia uma necessidade muito humana de ouvir-lhe a voz. Enquanto es¬perava e recordava-se de um beijo, imaginava consigo mes¬mo se não estaria se envolvendo em algo que só o faria sofrer. Não seria uma extrema tolice julgar-se capaz de domar o vento?

❇⏩❇⏪❇
Mais um

MARIAH - Quatro Destinos 1Onde histórias criam vida. Descubra agora