8 - Banho de água fria

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Ford gemeu quando os dois corpos se encosta¬ram. Sabia que, no fundo, nenhum deles tinha intenção de dançar. Fora apenas uma desculpa para tocar e ser tocado. Deslizou as mãos sob o casaco de Mariah, espalmando-as em suas costas. A cintura dela parecia incrivelmente fina en¬volta em seu abraço. Puxou-a mais para perto, até suas coxas se tocarem e os estômagos moldarem-se um ao outro. Movendo-se devagar ao ritmo da música, Ford a encarou. Nenhum dos dois falava.
Apenas se fitavam, enquanto a voz do cantor enchia o salão, falando da mulher de vermelho que nunca estivera tão linda quanto naquela noite. Ford admirava, fascinado, os loiros cabelos revoltos, os olhos suaves e sonha¬dores, os lábios entreabertos. O batom vermelho havia saído, deixando-lhe a boca nua e vulnerável.
— Droga, eu quero beijar você! — ele resmungou.
— E imagino que isso seja impensável, certo?
— Certo. Embora dançassem à sombra das plantas que decoravam um dos cantos do salão, estavam num baile público, onde certas regras de decoro deviam ser respeitadas.
— Também seria impensável se eu beijasse você? — ela perguntou, acariciando-lhe a nuca.   
— Na mesma medida. Então, o que vamos fazer, reverendo? Seus corpos moviam-se ao ritmo sensual da música, unidos na mesma necessidade de maior contato.
— Não podem nos enforcar pelo que não virem. — Ainda com as mãos sob o casaco, Ford a puxou mais para si. Os seios arredondados e firmes de Mariah aconchegaram-se no peito musculoso, fazendo-o respirar fundo. — Você não está usando! — ele murmurou, por fim esclarecendo a dúvida que o perturbara durante toda a noite.
— O quê?
— Roupa de baixo.
— Claro que estou — Mariah sussurrou. — Calcinha ver¬melha. — Ela fechou os olhos por um instante quando as mãos de Ford desceram até a curva de seus quadris. — Gosta de vermelho, reverendo?
— Gosto de sentir você — ele respondeu, erguendo os qua¬dris de Mariah em direção a seu corpo excitado.
Murmurou alguma coisa para si mesmo e baixou os lábios sobre os dela para o beijo impensável. Teve a presença de espírito, porém, de não deixá-lo durar mais que alguns segundos. Um breve aperitivo que só serviu para fazê-los querer mais. Como uma gata dengosa, Mariah inclinou a cabeça para trás. Os lábios de Ford tocaram-lhe o pescoço, depois a orelha.
Dessa vez foi ela quem lhe procurou a boca. Ford saboreou o gosto proibido antes de cortar depressa a carícia. Os beijos ilícitos, as intimidades que aconteciam sob o ca¬saco só tornavam o momento mais doce. E mais sensual. Mariah nunca havia sentido um fogo tão intenso abrasar-lhe o corpo. Estremeceu quando as mãos de Ford subiram de seus quadris para as laterais dos seios, acariciando com os polegares a pele sensível.
— Ford? — ela murmurou, agarrando-o pelo pescoço em busca do apoio que as pernas moles já não lhe proporcionavam.
Ao ouvi-la chamar seu nome e ao sentir a maneira como o corpo dela quase se derretia sobre o seu, Ford recobro bom senso. O que estava fazendo?
Segurou-a pelos braços para equilibrá-la e distanciou seus corpos quentes. Fitou-a por um breve instante e, então, soltou-a e respirou fundo.
Por alguns momentos, nenhum dos dois soube o que dizer ou o que fazer.
— Mariah, eu... não posso lhe dar o que você quer. O que nós dois queremos.
— Ford passou a mão pelos cabelos. — Não posso pregar princípios que eu próprio não esteja disposto a seguir. Preciso dar o exemplo. Certas coisas são esperadas de mim. Eu... Ah, droga! — Era difícil explicar que determinada atitude era errada quando havia parecido tão correta.
— Quer dizer que não vamos poder testar o método cíclico de dias férteis e seguros? — ela perguntou, tentando sorrir.
— Não. — Mas ela era tão linda! E Ford a desejava tanto!
— Droga, e eu já estava fazendo meus cálculos. — Uma vez mais Mariah procurou sorrir, mas não teve muito sucesso. Não eram sorrisos que queria naquele momento. Queria fazer amor com Ford.
— Mariah, eu sinto muito. Não deveria ter deixado as coisas chegarem a este ponto. Foi culpa minha.
— Por que você sempre assume a responsabilidade por tudo?
— Força do hábito.
— Um mau hábito.
— Apenas um entre muitos — ele comentou, sorrindo.
— Ford, diga-me uma coisa. O que pastores solteiros fazem nessas situações?
— O velho banho de água fria.
— E funciona?
— Tenho a impressão de que não vai funcionar esta noite — ele respondeu, brincando. Mas, no fundo, achava que de fato não adiantaria.
— Se você fosse um médico, ou um advogado...
— Se eu fosse um médico, um advogado ou um chefe in¬dígena, levaria você para a casa tão rápido que nós dois iríamos ficar tontos.
Mariah sorriu, escondendo-se uma vez mais atrás de irre¬verência.
— Onde se escondem os chefes indígenas quando precisa¬mos de um?
Uma hora mais tarde, voltavam para casa em silêncio. Ford mantinha os olhos fixos na estrada e as mãos firmes no volante. Mariah fitava a paisagem escura da noite. Por mais que ten¬tassem desviar os pensamentos, nenhum dos dois tinha o poder de suprimir as sensações que comandavam seus corpos excitados.
Nem mesmo o rádio cooperava, pois a voz meio rouca de E. Z. Ellis, um cantor de rock famoso por suas letras sensuais, ressoava dentro do carro. E de suas almas:
"Sinto que preciso, baby. E você também. Deite aqui a meu lado até que a noite se vá. Chame meu nome quando nos separarmos. Abrace-me, beije-me, faça amor com meu coração." Ford agitou-se no banco, buscando sem sucesso uma posição confortável. No rádio, Ellis continuava a provocá-lo.
"Sinto que preciso, baby. E você também. Deite aqui... "
Ele desligou o botão do rádio e olhou para Mariah, sem dizer nada. Ford conhecia Ellis e era uma das poucas pessoas  a saber que o cantor tinha uma casa para descanso nas pro¬ximidades de Haughton, em Lake Bistineau. Prometeu a si próprio que cobraria do superstar por aquela "colaboração".
Assim que o carro parou diante da casa de Mariah, o silêncio ficou mais pesado, a tensão mais densa, a dor... Mais dolorida.
— Não precisa me acompanhar até a porta — Mariah de¬clarou, cortando a escuridão com seus brilhantes olhos verdes.
—Claro que vou...   
— Não precisa...
— Vou acompanhá-la até a porta!
Ford, porém, manteve as mãos nos bolsos da calça, como se assim se sentisse mais seguro. Chegando à porta, Mariah virou-se. O luar prateava seus cabelos claros e brincava em suas faces cor de marfim.
— Boa noite — ele murmurou.
— Boa noite. Nenhum dos dois se moveu.
— Diga que compreende. — O olhar de Ford era quase suplicante.
— Eu compreendo. — Ela sorriu, travessa. — Você é um homem de princípios e eu sou uma mulher de honra. Acho que estamos a caminho da santidade.
— É, talvez. — Numa última concessão a seus impulsos, Ford segurou a mão de Mariah e a levou aos lábios. Depois a soltou e desceu os degraus da varanda, em direção ao carro.
— Ford? Não use toda a água fria da cidade, está bem?
Vinte minutos depois, Ford apoiava as mãos no azulejo do banheiro e deixava a água gelada cair sobre as costas nuas. Ele suspirou, Nem toda a água fria da cidade conseguiria aliviar a dor que o consumia.
Irritado, desligou o chuveiro, enxugou-se, apagou as luzes do trailer e foi para a cama. Uma cama fria e solitária que poderia estar aquecida se Mariah...
Às duas horas da madrugada, ainda virava de um lado para o outro, sem conseguir tirar Mariah da cabeça. Às duas e dez, pensou em tomar outro banho frio, mas desistiu ao lembrar que o primeiro não havia adiantado muito. Às duas e vinte, praguejou em voz alta. Às duas e meia, encarou os fatos. Era inútil tentar dormir.
As duas e meia da madrugada, Mariah havia se virado e agitado até sua cama parecer um campo de batalha. Experimentou uma leitura, leite quente e até o banho frio que não Tinha planejado tomar. Nada ajudou. Sentia-se vazia e pronta para subir nas paredes. Qualquer parede. A Grande Muralha da China. Era um dos poucos lugares onde não estivera. Pre¬cisava ir para lá em seguida. E logo. Também para Xangai, Cingapura e Austrália. Foi com grande surpresa, e um certo desânimo, que percebeu que nenhum dos lugares imaginados a empolgava tanto quanto os braços de Ford. Naquele momento, quase três horas da madrugada de uma longa noite, o único lugar para onde gostaria de ir era SHANGRILA.
Ele a estava evitando. Mariah começou a suspeitar no meio da semana e teve cer¬teza no sábado. Não telefonou nenhuma vez. Seu único sinal de vida fora um bilhete avisando que os membros idosos da igreja se reuniriam na sexta-feira à noite para organizar ativi¬dades sociais e perguntando se ela poderia estar no salão co¬munitário às sete horas.
Ela chegou dez minutos antes da hora, de minissaia de brim e botas. Tensa e ansiosa com a possibilidade de encontrar-se com Ford, entrou pela porta lateral e ouviu vozes vindas da pequena sala de recreações no fundo do corredor. No caminho, passou por uma porta aberta onde se lia "Escritório do Pastor".
O aposento estava vazio. A mesa, como a escrivaninha no trailer de Ford, continha pilhas de livros e papéis. Ao lado de uma revista aberta, viu os óculos dele. Mariah sorriu lem¬brando da noite em que haviam corrigido provas e em que ela o provocara por causa dos óculos. Recordou-se dos beijos dele, da dança no baile de ano-novo, de tudo. Eram lembranças demais.
Continuou a andar pelo corredor.
— Seja qual for á decisão de vocês, apenas me avi... — Como por telepatia, Ford ergueu a cabeça. Olhos âmbar e verdes se encontraram. Dois corações se descompassaram mesmo tempo. — Aí está ela. Tão ansiosa para participar do grupo que até chegou mais cedo.
Mariah hesitou à porta, mais tensa do que nunca. Ford es¬tendeu-lhe a mão e a fez entrar.
— Pessoal, esta é Mariah Calloway.
— Claro, a filha mais nova de Ben e Grace — uma voz reconheceu.
— Pensei que você estivesse no Taiti — outra comentou.
— Não, faz semanas que ela chegou em casa.
— Não é linda? Parece muito com a mãe.
Mariah reconheceu alguns dos rostos, embora fizesse tempo que não os visse. Todos, mesmo os que ela não conhecia, sorriram para ela.
— Oi — Mariah cumprimentou sem jeito, apesar de sua costumeira extroversão.
— Se precisarem de mim, estarei no escritório — Ford avisou. — Ah, mais uma coisa. Vou fazer o anúncio no do¬mingo, mas queria contar primeiro a vocês. Quem sabe a sa¬bedoria coletiva presente nesta sala consiga imaginar uma so¬lução. — Todos prestavam atenção nele. Ford estava preocu¬pado, indicando que o caso era sério. — Vamos ter que de¬volver as túnicas do coro.
-- O quê?
— Ah, não!
— Mas eu pensei...
— O que aconteceu, Ford? — J. C. Hardcastle perguntou.
— O doador teve problemas financeiros. Ninguém lamenta mais o que aconteceu do que ele.
— Não há jeito de a igreja pagar a despesa?
— Infelizmente, não — Ford respondeu. — Ainda estamos pagando os vitrais.
— Qual é a quantia necessária? — Ruth Doege quis saber.
— Túnicas não são baratas. O valor total é de quase sete dólares. Mas não fiquem aborrecidos por isso. Já que vocês todos conhecem Deus há mais tempo que muita gente, achei que poderiam rezar e ver se aparece alguma solução. — Ele olhou em volta. Todos murmuraram afirmativas.
— Bem, estarei no escritório. Mariah observou Ford sair, nervosa. Sentia-se como um peixe fora d'água.
— Ouça, eu nunca fiz isto antes. Se puderem me dar uma idéia do que querem...
— Queremos fazer alguma outra coisa além de jogar bingo — informou Ruth Doege, com seu inseparável gorro de lã na cabeça. — Não há nada errado com o bingo, mas pretendemos fazer isso quando ficarmos velhos.
Todos riram, inclusive Mariah.
— O que gostariam de fazer, então?
— Ter alguma atividade organizada uma vez por mês. Algo que a gente fique esperando chegar o dia.
— Como uma quadrilha junina.
— Ou sapateado.
— Você não sabe sapatear, James Shaffer.
— Ora, mas posso aprender.
— Pois eu vou lhe dizer o que quero fazer — interveio J. C. Hardcastle.
— O quê? — Mariah indagou.
— Quero ir à pista de corridas apostar nos cavalos.
— Que vergonha, J. C. — alguém protestou.
— Quando, partimos?
Todos riram de novo. Um dos programas já parecia acertado. Mariah relaxou um pouco.
— Alguém tem um carro grande? — indagou.
— J. C. tem.
— Ótimo. O que mais querem fazer?
— Viajar. Talvez para Eureka Springs, em Arkansas.
— Boa idéia. Para onde mais?
— Talvez Dallas, para fazer compras e ouvir a sinfonia
— Vicksburg, para ver as construções antigas.
— Ei, Mariah, você tem alguma experiência com viagens?
— É, alguma — ela respondeu, sorrindo, antes de começar a descrever como Eureka Springs era linda no outono, quando as folhas das árvores coloriam-se de laranja e amarelo.
Uma hora e meia mais tarde, ela dirigiu-se ao escritório de Ford. Parou à porta e observou-o por longos momentos. Ele estava sentado à mesa, teclando números numa calculadora. A julgar por sua expressão, os resultados não estavam sendo satisfatórios.
Ergueu a cabeça e passou a mão pelos cabelos, desanimado. Foi nesse momento que a viu.
— O que é tão ruim assim? — ela indagou.
— Estava tentando fazer setecentos dólares caírem do céu.
— Aposto dez contra um como está se culpando porque não tem como tirar o dinheiro do nada.
— Você está começando a me conhecer bem demais.
Os dois sorriram, mas acharam melhor não fazer mais co¬mentários a respeito.
— Sinto muito pelas túnicas.
— Eu também. Todos estavam entusiasmados com as roupas novas. Como foi a reunião?
— Eu me diverti.
— Sabia que seria assim. Você tem um dom natural para lidar com as pessoas.
Mariah ficou em silêncio por um instante, pensativa, ob¬servando a maneira como os cabelos de Ford caíam sobre a testa, dando-lhe um ar quase juvenil.
— Você está me evitando — ela disse de repente, com sua conhecida sinceridade.
— Estou. Não consigo controlar minhas reações quando estou a seu lado.
No fundo, Ford tentava proteger-se.
Não podia envolver-se emocionalmente com uma mulher que, a qualquer momento, sairia de sua vida para buscar novas aventuras.
— O que acontece com você quando está comigo é tão ruim assim?
— Não, se eu pudesse fazer alguma coisa a respeito.
— Então não podemos ser apenas amigos?
O olhar de Ford percorreu o rosto de Mariah, a curva dos seios, o contorno dos quadris.
— O que você acha?Fora a coisa mais estúpida que Mariah já sugerira, pois seu corpo se esquentara pela mera observação dele. Queria dizer algo espirituoso para aliviar a solidão que sentia, mas não conseguia pensar em nada. Por isso, caminhou em direção à porta, com a intenção de ir embora.
— Mariah?
— Sim?
— Se isso for algum consolo, senti sua falta.
Ela não disse nada. Apenas sorriu, deixando que a confissão dele funcionasse como um bálsamo para suas emoções con¬turbadas. Saiu para o corredor. Então, parou e virou-se.
— Você mentiu, reverendo. Banhos frios não adiantam nada.
Mariah teve a idéia naquela noite, enquanto, pensando em Ford, permanecia uma vez mais acordada na cama. Na manhã seguinte, bem cedo, telefonou para J. C. Hardcastle.
— O que acha? — indagou, depois de expor seu plano para conseguir setecentos dólares.
— Acho que Deus trabalha por caminhos que às vezes não conseguimos compreender. A que hora quer começar?
— Esta noite, às oito e meia. No estacionamento da igreja.
— Estaremos lá.
Às oito e meia em ponto, Mariah entrou com o carro de Éden no estacionamento escuro. Assim que suas luzes se apagaram, um outro par de faróis apareceu e uma perua van á das sobras. O veículo parou e sua porta se abriu para quê Mariah entrasse no banco da frente. Ela olhou para trás e sorriu para o grupo de idosos da igreja. Todos a fitavam com olhos brilhantes e expressões ansiosas.
— Bem, este é o plano...
A espelunca que Duke Boyd, relutante, havia recomendado por manter uma mesa de jogo de dados na sala dos fundos localizava-se numa rua que, anos antes, havia sido sinônimo de pecado. A polícia limpara a área mas, como acontecia em quase todas as cidades, ainda era possível encontrar redutos de bebida e diversão. Sabendo onde procurar, sempre se achava também um lugarzinho para tentar a sorte no jogo. Mariah olhou em volta enquanto J. C. estacionava a perua. Um luminoso de néon com várias letras faltando indicava que haviam chegado ao Refúgio do Bernie.
— Fiquem todos juntos e deixem que eu fale — Mariah advertiu. Pregadas à parede com a pintura descascada, havia fotos de dançarinas em trajes sumários. — Se algum entre vocês usa marca-passo, é melhor ajustá-lo de acordo — ela brincou.
Quando abriu a porta, a música barulhenta e pesada quase os ensurdeceu. Com uma careta, Mariah fez um sinal para que a seguissem e, bravamente, penetrou o recinto. O salão, enevoado de fumaça, cheirava a incêndio. No palco, duas mulheres de shorts reduzidos e camisas amarradas logo abaixo dos seios avantajados podiam muito bem ser a causa do fogo.
— Minha nossa! — alguém do grupo exclamou, quando as mulheres se moveram em sincronia com a música.
— Já tinha esquecido que tudo podia ser tão firme — Ruth comentou, fascinada.
— James Shaffer — a mulher dele o admoestou. — Feche essa boca mole!
— Você também, J. C. — avisou Ruth. — Sabe que precisa ter cuidado com seus problemas cardíacos.
— Minha nossa! A primeira pessoa tornou a exclamar. Um homem grandalhão aproximou-se deles com cara de poucos amigos. Sem dúvida, nunca vira um grupo de aqueles entrar no estabelecimento.
Mariah jogou os cabelos para trás e o encarou.
— Bernie está nos esperando.
O homem pareceu desconfiado.
Cochichou alguma coisa com outro funcionário corpulento e, minutos depois, os con¬duzia até os fundos da casa, à presença de Bernie. Este vestia uma camisa florida e deixava claro pela expressão dos olhos que gostava da cor do dinheiro. Mesmo que fosse de um grupo de idosos conduzidos por uma moça de ar elegante.
— Você é Mariah?
— Sim — ela respondeu, com sua melhor voz de mulher da vida.
— Pronta para começar?
— Não viemos aqui para dançar.
Bastaram três lances de dados para que Bernie percebesse que a moça de ar elegante sabia jogar. Mais dois lances e sua úlcera começou a incomodá-lo.
Mariah, projetando os lábios escarlate de uma maneira que todos os homens presentes notaram, soprou nos dados presos entre suas mãos de unhas vermelhas.                         
— Vamos lá, queridos. Preciso de uma nova túnica para o coro. — Ela os atirou, deixando-os voar sobre a mesa de feltro verde. Uma viva elevou-se do grupo da igreja. A úlcera de Bernie deu uma nova mordida em seu estô¬mago.
Uma hora mais tarde, Ruth segurava setecentos dólares em suas mãos enrugadas, com J. C. e Jim Shaffer a protegê-la, um de cada lado.
— Vamos jogar — Mariah proclamou.
Todos a fitaram, surpresos.
— Mas Mariah, já temos o dinheiro — Ruth ponderou.
— Não eram setecentos dólares exatos. Ainda há os im¬postos e taxas de entrega. Além disso, precisamos recuperar nosso investimento inicial. — Cada membro do grupo havia doado dez dólares e a maior parte do dinheiro provinha de cheques magros de aposentadoria. — Mais uma vez, queridos — Mariah murmurou, acariciando os dados e jogando-os sobre a mesa.
Todos suspiraram, aliviados, e Mariah sorriu, estendendo a mão para pegar o dinheiro. No momento em que o recebia, o brutamonte que os recepcionara entrou na sala e falou, ner¬voso, no ouvido de Bernie, que empalideceu de imediato.
— Batida? Droga, vamos limpar tudo isto!
As pessoas começaram a correr como ratos abandonando um navio em naufrágio.
— Meu Deus, será que vamos para a cadeia? — Ruth as¬sustou-se.
— Ninguém vai para a cadeia — Mariah garantiu, condu¬zindo seu pequeno grupo para a porta. — Fiquem calmos e mantenham-se todos juntos.
— Não vou jogar bingo na prisão — alguém disse.
— Quero meu advogado — outro reclamou.
— Você não tem advogado — um terceiro lembrou. Seguiram pelo mesmo caminho por onde haviam entrado.
Já que beber e ver mulheres dançando não eram ilegais, os clientes do jogo tinham todos passados para o salão principal, que estava abarrotado de gente.
— Com licença — Mariah pedia. — Podia nos dar licença? — Ninguém a parecia escutar, devido ao alto volume da mú¬sica.
Jim Shaffer bateu com a bengala na cabeça de alguém. O homem virou-se, furioso, mas viu apenas o rosto dengoso e sorridente de Mariah.
— Com licença, docinho — murmurou, feminina. coçando a cabeça sem ter certeza de haver sido atingido ou não, o homem deu passagem para o grupo. Um vez lá fora, Mariah virou-se para trás.
— Vamos correr para o carro! Depressa! — Ela ajudou cada um a subir na perua. Ruth segurou o dinheiro em seu colo enquanto J. C. ligava o motor. Nesse preciso momento, um carro de polícia entrou no estacionamento com a luz ver¬melha piscando.
— Rápido, J. C!
J. C. pisou no pedal. Os pneus derraparam no cascalho e a perua moveu-se para frente. Chegaram à rua com gritos de vitória. Mariah ia soltar um suspiro de alívio quando notou o 300ZX surgindo atrás da polícia. O motorista do carro esporte parecia estar com mais pressa do que as viaturas.
— Oh, não, é Ford!
Sem dúvida, Ford também reconhecera a perua e seus ocu¬pantes, pois fez uma brusca meia-volta e veio atrás deles, até encostar seu pára-choques no de J. C. Quinze minutos depois, estacionavam ao lado da igreja. Ford saiu do carro tão depressa que deixou o motor ligado e os faróis acesos. Havia uma Bíblia sobre o banco, ao lado de um porta óculos e de uma caixa de comprimidos antiácidos aberta.
— O que pensam que estão fazendo? — esbravejou, esperando-os desembarcarem com as pernas afastadas e os olhos soltando faíscas. Mariah desceu da perua. Havia pego o dinheiro das mãos de Ruth, como se isso pudesse fazê-la assumir toda a respon¬sabilidade.
— Na verdade, já fizemos — ela respondeu. — Consegui¬mos os setecentos dólares para as túnicas. Mas como soube que estávamos lá?
— Isso não importa.
— Claro que importa! Como foi?
— Duke Boyd ficou preocupado com você. È tinha toda a razão. Mariah, será que não percebe que tipo de lugar é o Refúgio do Bernie?
— Temos que ir para onde a ação está, reverendo — ela revidou, começando a irritar-se também. — Não se costuma encontrar jogos de dados em salões de igreja! E como sabe que tipo de lugar é o Refúgio do Bernie?
— Eles têm mulheres dançarinas, pastor — um dos homens contou. — Com uns shorts minúsculos.
— E blusas amarradas bem embaixo dos...
— Shh!
— Shh!
— Você chamou a polícia? — Mariah indagou.
— Não, claro que não! Duke soube da batida policial e me avisou.
— O pastor chamou a polícia para nos pegar? — um dos idosos espantou-se, não tendo ouvido bem a conversa.
— Não. Duke Boyd...
— Duke Boyd chamou a polícia? Ora, aquele...
— Não fui eu nem Duke quem chamou a polícia, não sei por que eles escolheram justamente esta noite para fazer a batida, mas, droga, isto não vem ao caso! — Ford explodiu.
— Certo. Prefiro as camisas amarradas bem debaixo dos...
Alguém deu uma cotovelada no homem. Ele resmungou. Ford ergueu as mãos para o céu, atordoado. Aquele era seu grupo de idosos!
— Ouça, foi tudo minha idéia — Mariah confessou.
— Não comece a culpar esta doçura de menina — J. C. a interrompeu. — Todos nós sabíamos o que estávamos fa¬zendo. Além disso, nunca me diverti tanto em minha vida. — Ele olhou para Mariah e deu um piscadela. Ela piscou de volta.
Ford colocou as mãos nos quadris e suspirou.
— Vão todos para casa. Conversaremos sobre isto amanhã.
Um por um, homens e mulheres abraçaram Mariah e entram na perua. Ela esperou até que o veículo sumisse na noite. Voltou os olhos para Ford e percebeu que ele a encarava.
— Sabe que não posso pegar esse dinheiro.
— Por que não?
— Porque é dinheiro mal ganho, ora essa!
— Dinheiro mal ganho?
— Sim. Dinheiro ilegal.
Mariah correu até o carro dele, pegou a Bíblia e a sacudiu no ar.
— Mostre-me!
— Mostrar o quê?
— Mostre onde diz "não comprar túnicas para o coro com dinheiro mal ganho"!
— Você sabe muito bem... Essa não é a questão!
— Vou lhe dizer qual é a questão, pastor! Um grupo de pessoas idosas doou dinheiro de que não podiam dispor e com o risco de perder cada centavo. Só para que a igreja pudesse ter roupas novas para o coro! Essa é a questão! — Ela jogou a Bíblia e o dinheiro dentro do carro. — Está aí. Faça o que sua santíssima consciência mandar!
Mariah virou-se e caminhou em direção a seu carro. Dera poucos passos quando Ford a segurou pelos ombros e a fez encará-lo. Fitaram-se por um instante e, então, Ford suspirou e a puxou para seus braços.
— Será que não percebe como eu fiquei com medo? Ima¬ginei todo o tipo de coisas horríveis acontecendo a você naquele lugar.
Inclinando a cabeça, ele a beijou. Não com paixão, mas como um gesto punitivo. Queria castigá-la pelo que o fizera sofrer e assegurar-se de que ela estava bem. Quando tornou a fitá-la, porém, a raiva se transformara em ternura.
— Você me assustou — murmurou, apertando-a de encontro a si. — O que vou fazer com você, Mariah Calloway? Ambos sabiam o que ele gostaria de fazer, mas tinham consciência, também, de que isso estava fora de questão.
Na manhã de domingo, o coro estreou suas novas túnicas, o grupo de idosos esbanjou sorrisos. Mariah exibiu um olhar de suprema satisfação e Ford... Ford apenas esperava que Deus tivesse senso de humor.

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Mais um..

MARIAH - Quatro Destinos 1Onde histórias criam vida. Descubra agora