O HOMEM DO FAROL

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A cidade de Santa Terra é uma das maravilhas perdidas no Estado do Rio de Janeiro. Outrora fora grande produtora de açúcar e aqueles que investiram no pequeno município serrano durante a época do império garantiram riquezas para, ao menos, quatro gerações futuras. Entretanto, o brilho das grandes lavouras apagou com o decorrer do tempo, havendo apenas resquícios de um potencial desperdiçado, restando aos quase quinze mil habitantes sobreviverem graças à fábrica produtora de cerveja localizada no extremo norte do município.

Essa afirmação, contudo, geraria discussões entre os moradores mais antigos que atribuem a subsistência da cidade devido ao comércio alimentício. Fato é que Santa Terra é a última parada possível daqueles que pretendem subir a Serra dos Percevejos rumo ao interior do Estado, e é o primeiro contato civilizatório daqueles que acabaram de descer a famosa serra, rumo à capital. Por isso as várias lanchonetes de Santa Terra estão sempre cheias de consumidores eventuais, caminhoneiros, famílias em viagem, meros civis que buscam cruzar a serra para passarem o dia na praia não mais que 30km da cidade.

Os jovens moradores de Santa Terra só têm uma certeza na vida: de que irão sair de lá o mais rápido possível. E era o que efetivamente acontecia, o adolescente prestava vestibular para a capital e iria morar nas selvas de pedra, visitando os familiares poucas vezes durante o ano e jamais retornava depois de formado, o que fazia com que os moradores mais jovens ainda habitantes de Santa Terra fossem vistos como aqueles que não obtiveram sucesso, restando apenas o trabalho fabril ou servindo refeições nas lanchonetes. Esse era o caso de Flávio Salgueiro.

Flávio recebeu sua educação, como todos os outros de sua idade, na Escola Municipal de Santa Terra. Seu sonho, desde criança, foi o de seguir a carreira musical, objetivava levar o reconhecimento de Santa Terra para o mundo, o que orgulhava ingenuamente seus pais, já idosos. O irmão de Flávio foi para a área da advocacia, passou em concurso para juiz no Piauí e nunca mais deu as caras na cidade, enviando mensalmente dinheiro à família e um cartão de felicitações quando lembrava do aniversário de algum deles. Flávio terminou o ensino secundário quase que forçado pelos pais, porém não conseguiu uma vaga no curso de engenharia civil, sonho de sua mãe.

Já com seus 21 anos nas costas, viu-se obrigado a arranjar emprego como garçom na maior lanchonete de Santa Terra. Perdeu o contato com seus poucos amigos e passava seus dias servindo pratos e limpando mesas, quando acabava o expediente corria para casa a fim de praticar na velha guitarra, presente de uma tia-avó hoje já falecida. Porém, sua rotina encontraria grandes mudanças no dia 18 de março de 2011.

Acordou cedo, como de praxe, nesse fatídico dia. Precisava chegar à lanchonete antes das 8h, horário no qual os caminhoneiros começavam a se aglomerar rugindo atrás de pão com linguiça e xícaras transbordando de café. Caminhava para o serviço. Nunca se preocupou em aprender a dirigir, pois de pouco adiantaria carteira de habilitação já que o carro de seus pais configurava como um enfeite inerte na garagem de casa. Houve um problema na bateria há cerca de dois anos e que até hoje não foi consertado, afinal de pouco servia um automóvel em Santa Terra e dinheiro não era algo tão menosprezável para a família Salgueiro.

Durante os trinta minutos que demorava a caminhada desde a entrada de Santa Terra, residência de Flávio, até o restaurante “Sonhos da Serra”, pensamentos uivavam na mente do jovem garçom, implodindo devaneios sobre uma futura carreira artística. Muitos diziam que ele tinha talento, mas que ser talentoso no cenário musical não significa absolutamente nada. Outros já eram menos entusiastas quanto ao talento de Flávio, dizendo que sua técnica era incipiente, que até daria para arrancar alguns trocados nos bares da cidade, mas que se arriscasse a ir para a capital seria engolido pela concorrência e logo viraria pedinte nas ruas. Tamanha motivação apagava aos poucos o sonho, agora tão distante, de ser um músico reconhecido. Teve a frustração cessada ao passar pelo velho jornaleiro saindo da padaria, que de prontidão gritou o nome de Flávio e lhe direcionou, munido de um sorriso largo, um longo aceno.

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