I
Em 1910 a pequena cidade de Don Inácio era um pouco mais do que algumas dezenas de casas, a igreja Matriz (ainda pequena, não mais que uma capela), o cemitério e a praça Dolores Cintra onde acontecia todos os anos a Festa do Congado. Fora isso a população daquele amontoado de residências se espalhava pelas fazendas dos três coronéis: Seu José Ferreira, Dr. Calixto e Coronel Bichart. Todos os três, durante as festas do congado, usavam os melhores ternos de congo da região e faziam questão de abarrotar as mesas e barracas com prendas e boa cachaça.
A cidade ficou famosa pela qualidade da festa e por mais um fator: os duelos de violeiros. Quando as doze badaladas se davam na igrejinha e as moças de bem com suas famílias já se tinham recolhido a muito, uma multidão de peões, jagunços, comerciantes e violeiros se reunia no coreto e só o som do pontilhado rasgava a madrugada. Esse som, recheado das mais diversas emoções, encantava quem ainda não tinha sido pego pelo sono e trazia, aos sonhos de alguns meninos, amores perdidos, fazendas salvas e tantos outros temas comuns naquela época.
Numa casinha pequena, à beira da igrejinha, dormia um menino magricela, mulato e esperto. Passava a noite ali para não subir à fazenda de Seu Zé Ferreira, longe demais da cidadezinha. Ali, que era residência do sacristão, o menino sonhava em também tocar viola e ser um dos que levavam o anel de Santa Cecília. O anel era um presente do Coronel Bichart, que apaixonado pelo instrumento mandara fazer, de puro ouro, um anel com a imagem da santa. Dava também dois contos de réis, um cavalo bom e uma viola nova. O menino se deliciava com esses prêmios e sonhava em se tornar um violeiro.
O garoto, conhecido por todos como Tonho, cresceu. Trabalhou com o pai na lida do gado da fazenda. Aos dezesseis anos comprou sua primeira viola e ao lado dos calos deixados pelo trabalho surgiram os do instrumento. Mas era frustrante, ele não conseguia a velocidade dos violeiros mais antigos e nem a qualidade. Todos diziam que ele ainda tinha muito tempo para progredir e que levaria anos. Mas a paciência não era uma das virtudes de Tonho e seu gênio explosivo já o colocara em situações complicadas.
O garoto tomava uma cachaça no final de semana, na folga que tinha lá no bar do Zé Galinha. Ficava no canto, remoendo uma forma de conseguir melhorar em tempo recorde, ter seu anel, sua viola e comprar uma terrinha com os contos de réis. Estava perdido nesse sonho quando, dois jagunços, nunca vistos naquelas bandas, apearam do cavalo e já dentro do bar pediram cachaça. Os dois homens recendiam a suor e, pela poeira no gibão e na capa, deviam estar na estrada há vários dias.
Tonho observou os dois com cuidado, do canto onde estava. Debaixo da pesada capa de viagem do mais alto pendiam pistolas, um facão de boa qualidade e também havia uma faca longa, boa para destrinchar caça. O homem mais baixo, no entanto, apesar de estampar brutalidade nos seus olhos parecia menos feroz, tinha também uma pistola na cintura, mas ao retirar a capa a batina se mostrou. Os homens no bar imediatamente fizeram fila para beijar a mão do estranho sacerdote, Tonho seguiu os demais. Ao pegar na mão do padre o garoto estranhou os calos em contraste com a delicadeza usual dos sacerdotes que conhecia, os olhos dele também não expressavam bondade ou candura, mas sim dureza. Eram os olhos de um jagunço.
- Calma meus filhos - disse o padre - Não é necessária tanta formalidade. Que a graça e a paz de Deus Pai Todo Poderoso, o amor de Seu Filho, Jesus Cristo e a benção de São Bento, Dominador dos Demônios, recaia sobre vocês em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. – Ao terminar o sinal da cruz os homens voltaram para seus afazeres. O padre se dirigiu ao dono do bar:
– Filho, poderia contar com sua ajuda? – o sacerdote abrandou o olhar, quase como o de um padre comum.
– Mas é claro, o que vosmecê precisá pode pidi. Num há negativa pra Vossa excelência. – O sotaque do interior mineiro contrastava com a fonética impecável do sacerdote.
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Ecos 10
Short StoryOs treze contos e poemas presentes nessa edição da Revista Ecos são capazes de nos levar em uma viagem excitante através de histórias repletas de mistérios e personagens cativantes. Em "Kafra", um homem é diagnosticado com síndrome do pânico e pass...