O POMAR

26 5 6
                                    

O homem pintado de preto sai do barraco. Veste uma cueca preta e percorre uma trilha tentando desviar de galhos e arbustos e animais noturnos. Ele é um predador sem forma, só uma presença na escuridão, unindo-se às sombras como só as silhuetas conseguem se unir.

O canto de um animal no cume de uma paineira soa para a noite. O homem pintado de preto para e tenta se comunicar na língua das corujas, mas o bicho não responde.

Pisa dentro de um riacho e começa a xingar a água. “Que merda”, ele diz. Tem que retocar a maquiagem agora. Ou melhor, a pintura corporal, como ele gosta de chamar. Tira o tubo de graxa para sapato de dentro da cueca e o coloca sobre uma pedra. Tira cueca e meias e seca os pés molhados. Ele fica olhando a cueca preta cair no riacho com aquela incredulidade cansada reservada para situações que parecem não ter como piorar e do nada pioram.

Ele então decide deixar a cueca e as meias para trás e pinta os pés, virilha e nádegas com a graxa preta. Caminha até enxergar um ponto luminoso por trás de algumas árvores. É a vizinhança. Ele ouve o som de um motor e a luz de um farol desenha em seu rosto as formas intrincadas dos troncos das árvores.

Ouve o som de televisão e uma risada humana. Ele simplesmente sabe que aquela risada é de alguém morbidamente obeso.

Evidentemente, ninguém naquela vizinhança se preocupa com seus gramados, porque o matagal denso e pinicante que ele precisa transpor acaba lambendo sua pele e removendo camadas grossas de graxa negra.

A casa que ele procura é a menor dali. Paredes de alvenaria cor de pele e janelas marrom cano-de-pvc. Ele pula o muro sem muita dificuldade e se esconde sob uma janela. Dá para enxergar a mãe e o berço na frente da TV. Aquela ali está no mudo para não atrapalhar o sono da bebê, que quando está acordada espanta até os mosquitos com sua gritaria psicótica.

Hora de retocar a maquiagem. O calor pegajoso faz ele suar em baixo da camada de graxa. Se senta sob a janela e tenta cobrir um pedaço de pele encharcada nas axilas. As costas terão que ficar assim mesmo, porque um tendão teimoso continua a doer sempre que ele torce o corpo. O rosto já perdeu toda a sua definição e seu estômago já não é mais o mesmo depois de digerir tanta graxa de sapato.

A mulher agora amamenta a bebê sob a luz azulada e etérea da TV de trinta e duas polegadas, como uma divindade lactante de alguma gravura medieval, vestindo uma camisola rosa com florais azuis, o seio esquerdo parcialmente encoberto pela cabeçona desproporcional da criança e brotando pelo decote arregaçado da camisola. Sua expressão tem ao mesmo tempo um ar divino e cansado. Ali, sentado no jardim daquela casa decadente, ele tem a mesma sensação de quando era criança e voltava para casa depois de um dia cheio de brincadeiras aventurosas, quando tudo o que sobrara do dia agitado eram algumas casas emitindo luzes televisivas pelas janelas. Nos dias de sol as manchas em sua pele pareciam ainda piores, e eram nesses dias que sua mãe o obrigava a entrar em uma pequena cabana de compensado que emitia em seu interior a luz obliteradora de dezenas de lâmpadas ultravioletas, que segundo um artigo de alguma revista serviam para combater o vitiligo. O pai sempre chegava em casa do trabalho alguns minutos mais tarde e olhava para aquela criança metida num caixote de madeira reluzente com a expressão derrotada de alguém que está cansado demais para discutir.

Ele consegue entender quem dizia que seu pai era um covarde e um irresponsável. O que as pessoas não entendiam era que ele era uma pessoa boa também, apesar da insegurança doentia e de todo aquele tempo passado em silêncio submisso. Um bom homem e um excelente vendedor de móveis usados. O problema era: Muitas vezes ele pagava mais do que os móveis valiam e os vendia por menos do que havia pagado, dependendo da miséria em que se encontrava o cliente. Sua mãe, uma mulher determinada a ver o filho livre do destino genético do pai, tinha acessos de raiva sempre que descobria que o seu marido gastara duzentos reais por uma mesa com os pés carcomidos.

Ecos 10Onde histórias criam vida. Descubra agora