KAFRA

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Encaminho o presente documento ao médico perito responsável pela avaliação do paciente Miguel Cervantes.

O texto foi elaborado pelo referido paciente, conforme o protocolo de deliberação sobre aposentadoria por instabilidade psicossocial e deve integrar o processo de solicitação de deferimento de benefício social.

Dr. Salomão Rodrigues Vieira (ABP3699)

O texto a seguir tem como objetivo atestar e auxiliar no meu diagnóstico e tratamento e sua elaboração foi sugerida pelo Dr. Salomão Rodrigues vieira (Registro na Associação Brasileira de Psiquiatria nº3699) no intuito de exteriorizar ideias e sentimentos.

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Eu sempre odiava quando era meu turno de desligar o letreiro, ainda mais sendo eu o gerente, e sempre que o dono do turno faltava eu acabava tendo que assumir a responsabilidade.

Em uma cidade pequena quase todas as pessoas se conhecem, o que fazia com que todas as relações, mesmo as de trabalho, fossem quase informais. E lá era uma cidade bem pequena, apesar de na época já ser uma cidade promissora, com algumas indústrias sendo atraídas pela mão de obra barata, e a falta no trabalho raramente era seguida de alguma punição, o que acaba estimulando esse comportamento e me colocando diversas vezes na pior situação. O nosso mercado era grande, levando em conta que os outros que existiam no raio de 10 quilômetros não conseguiriam superar o status de mercearias. Mesmo assim, ainda nos situávamos na rodovia que circundava a cidade.

Voltando ao letreiro, ele já tinha visto dias melhores, mesmo na época dos acontecimentos que venho trazer, ele já se mostrava ultrapassado. Acho que se ainda existe, deve ser considerado algo "vintage" ou "oldschool" ou qualquer outro termo que venham a criar para justificar o fato da moda ser algo cíclico. Me lembrava muito aqueles painéis neon de bares com strippers que são marca registrada de todos os filmes de assassinos psicopatas. Só que, ao invés de uma moça com curvas sinuosas levantando e abaixando o vestido, nós só tínhamos um letreiro vermelho com mal contato na letra K, que piscava em intervalos cronometrados. O letreiro emitia um ruído de energia elétrica que, para o visitante casual passava completamente desapercebido, principalmente por não termos muito movimento após às 19, que era o exato momento em que nós o acendíamos, mas para mim era o mais irritante dos sons que meus ouvidos já haviam experimentado. Hoje eu sei exatamente o porquê.

No começo eu achei que era besteira, que não passava do meu subconsciente me pregando peças. Eu sentia que algo estava errado, me sentia sendo observado, sentia que algo ruim estava prestes a acontecer, cheguei até a sentir formigamento nas extremidades dos pés e das mãos, todos os sintomas que meu psiquiatra diagnosticava como uma forma clássica de síndrome do pânico. Ele sempre me falava que era algo normal, que eu me sentiria bem com doses cavalares de Novril associado à terapia em grupo. Se estar dopado de sentimentos pode ser considerado como "estar bem", então ele tinha razão. Eu não sentia medo, raiva, remorso, desprezo, não tinha nenhum sentimento durante todo o dia após ter começado com a medicação, exceto na hora de desligar o letreiro.

Vou narrar a primeira vez em que eu notei algo diferente com detalhes, afinal todo mundo lembra bem da primeira vez. As outras foram bem parecidas, então citar somente o que houve de diferente vai bastar. Era uma noite comum, todos já haviam saído do mercado e era meu turno de fechar as portas e apagar o letreiro. A rotina era fechar as janelas, as portas e por fim apagar meu carma. Nesse dia, quando desliguei a chave de energia da base do poste que sustentava as cinco letras de mal gosto, o K insistiu em ficar piscando e emitindo seu ruído por alguns segundos. Fiz minha nota mental em voz alta de agendar a manutenção, assim como o meu herói, O Máscara, faria.

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