WOMBAR

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Eu senti o cheiro de alguém se aproximando, escutei os passos receosos no chão úmido da caverna. Um curioso estava se aventurando a me conhecer:

-T...Tem alguém aqui? - Gaguejou uma voz feminina.

-Sim, sou um alguém não é mesmo?! - Surgi em frente da pobre moça.

Ela se assustou ao me ver surgindo tão de repente entre as sombras; mas manipulei sua mente para que não enxergasse minha real aparência.

-Então existe alguém que vive aqui? - Murmurou baixinho.

-Mas é claro! Não está me vendo?

-É que eu não imaginava realmente isso... - Parecia pensativa.

-O que uma jovem como você faz aqui?

Ela olhou receosa para mim, seu corpo tremia levemente, estava assustada.

-Eu quero de volta o homem que tanto amo.

-Para quê forçar um homem a voltar para você? Ele te abandonou, não é mesmo?

-Não! Foi uma mulher que o roubou de mim! - Seus olhos transbordavam ódio - Eu quero acabar com ela!

A raiva, ira, ódio. Eu adorava esses sentimentos, pobre moça; ela ainda irá se arrepender de ter me procurado.

Algum tempo depois, após meses de diversão, a minha festa com a garota acabou. Chegam mais ingredientes. O que é isso que ouço lá fora?

O herói chega à minha casa, inspirado pela beleza da pobre dama, sonhando com as glórias que ganhará assim que sua espada passar em meu pescoço. Seu sentimento ganancioso acha que dessa vez um pobre humano pode me desafiar, por mais que muitos já tenham tentado. O herói vem de espada pesada, tão pesada que seus dois braços mal podem aguentá-la, mas sua determinação é tão grande que o peso da lâmina não lhe faz mal. Sua vida está horrível e ele já perdeu muito do que tinha, mas isso não explica o fato dele ter vindo aqui sozinho para tentar mudar tudo, o risco é tão grande que isso me leva a crer que o pobre homem mal pensou no que tinha aqui dentro.

Pois minha humilde casa é nada mais que a caverna maldita. Ela ganhou esse adjetivo por inúmeros motivos. Primeiro, por ser um espaço labiríntico e malcheiroso no qual poucas criaturas aguentam ficar, segundo pela fama mórbida que carrega, pois quem aqui entrou nunca voltou para contar história, e terceiro por conta desse ser bestial que vos fala, modéstia à parte, jamais vi ser mais temível. A caverna sou eu e eu sou a caverna, ela não vive sem mim e eu não vivo sem ela. As raras vezes que dei as graças de meu ser fora daqui para propagar o mito de Wombar. Senti muita falta desse lugar, pois o local ficara desprotegido e ninguém podia me proteger. Meu consciente é a caverna, tudo o que aqui pisa eu fico sabendo, tudo o que respira, exala, sente, pensa e olha, eu fico sabendo. Todo ser vivo que aqui esteja, é controlado por mim, sou o ser onisciente e onipresente e esse é meu mundo. Mas fora daqui não sou ninguém, pois o poder da caverna não se conecta a mim.

De fato, algumas jornadas para fora daqui são necessárias para atrair os curiosos, e com a moça não foi diferente. Em busca de poder para vingar-se da rival, a qual supostamente roubara seu amado, entrou aqui com esperança de encontrar as respostas de sua vida. É claro que como bom anfitrião eu a acolhi muito bem. Eu lhe prometi veneno letal, beleza absoluta, riquezas e rapazes, mas ela só queria o amor de seu amado. Seu belo e voluptuoso corpo moreno só percebeu a armadilha depois que já estava presa, e daqui ela não vai sair mais, muito menos nos braços de um herói que pouco sabe cuidar de sua retaguarda.

Meu prazer reside justamente na jornada desses infelizes para cá, logo que sinto a calma do herói, já lhe faço uma surpresa. Meus mosquitos carniceiros recém-atraídos lhe pegaram as costas, e eu os mandei extrair todo o couro possível dos humanos. Para melhorar minha empolgação, o herói descobre meu calabouço secreto e se joga numa sala cheia de cadáveres e sangue, fechando a porta de metal antes que os mosquitos pudessem entrar. Fico admirado com a calma desse rapaz, pois com cinquenta metros de caminhada sua vida já tinha sido testada mais de cinco vezes, eu não estava gostando da falta de tensão. Decidi influenciar mais diretamente e aumentei o batimento cardíaco do herói de forma branda. BUMP-BUMP-BUMP-BUMP. Pensem no desespero de uma pessoa que sentia seus sentidos controlados pela primeira vez, é algo inenarrável.

Não quero ser alvo de críticas, mas o prazer do sofrimento de minhas vítimas me alimenta mais do que suas carnes e órgãos frescos. Comer um humano sem brincar com ele antes é algo tão monótono que eu prefiro ficar de jejum. O desespero me alimenta, me fortalece, me enobrece, ele faz parte de tudo o que é mais sagrado para minha raça, embora eu seja o único demônio que conheço. Meu prazer por essa loucura só não é maior que a curiosidade dos humanos quando resolvem vir aqui me enfrentar, mesmo eu sendo mal falado em qualquer cidade. Sem esse prazer, eu certamente morreria aos poucos.

Quero deixar meu desabafo de lado pois percebi que a Zuehir está ficando excitada. Ela é considerada a última cobra gigante do reino, ou, pelo menos, era, até acharem que ela estava morta, enquanto na verdade ela foi domesticada/escravizada por mim. A feição espantosa do herói quando adentrou no calabouço da Zuehir e viu que estava enfrentando uma lenda viva foi algo delicioso demais para mim. Essa mulher era tão importante assim para você correr esse risco? Obviamente eu jamais deixaria Zuehir tocar nas minhas presas, então ela só hipnotiza, para deixar a cena ainda melhor eu dou um toque de paralisia geral no herói, fazendo de estátua por alguns segundos, e culmino aumentando a frequência cardíaca do pobre homem. BUMBUMBUMBUMBUM. É música para meus ouvidos. Meu único desejo nesse mundo é que eu pudesse ler o pensamento das minhas presas, pois o homem estava tão tenso que suas palavras já não faziam mais sentido.

A voz da bela mulher percebe o perigo e grita por ajuda, o grito ecoa na cabeça do herói fazendo-o despertar da paralisia e sair do alcance da cobra, porém, ao passar pelas colunas negras do centro de minha caverna, ele teve uma das piores visões de sua vida. Jazia em sua frente a bela morena em pedaços sobre uma cripta. Seus cabelos se confundiam com as tiras de couro das sandálias, seus ossos das mãos tentavam segurar seus grandes seios, porém agora disformes, sua garganta jorrava sangue e seus olhos estavam só eu sei onde. Atrás de toda a carnificina estava Wombar, seu humilde narrador, uma figura gigante e vermelha, sem forma representável e com poder incomensurável.

O herói vira que já não havia mais sangue em meu corpo, eu já havia devorado a donzela a muito tempo atrás e estava reproduzindo sua fina voz na sua mente. Ele se deu conta de tudo o que passou e viu todo o poder que tinha que enfrentar. Seu batimento cardíaco aumentava sem minha interferência divina. A espada mal chegou a se mover contra mim, seu coração atingiu um ritmo tão frenético que simplesmente parou no melhor da brincadeira. A lâmina caiu, depois o herói, depois a minha esperança por algo maior.

Sim, eu devorei sua carne, aproveitei bem todo esse momento, mas me senti mal depois. Meus planos para ele eram muito maiores. Um humano pode chamar outros humanos, talvez se eu deixasse sair um, atrairia multidões até mim. Eu me refestelaria no sangue. Só me resta esperar sozinho aqui até que o mito de Wombar atraia a curiosidade de mais alguém. Daqui não saio mais, espero que nunca descubram que fora daqui eu não sou nada.

Renan Rondon
Rrhapsody

Ecos 10Onde histórias criam vida. Descubra agora