03 | CARTAS ESCRITAS EM NOITES SEM SONO

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03 | CARTAS ESCRITAS EM NOITES SEM SONO

JUNE.

Lakeside,

Outubro de 2001.

Mike me deixou na porta de casa, se despediu de mim com um beijo, avisou que passaria cedo pela manhã. Não deveria, mas me senti um pouco animada por saber que teria a noite inteira longe de Mike. Estava aliviada por saber que o pesadelo no Old Paul's havia acabado, pelo menos momentaneamente.

Passei pela sala, e cumprimentei mamãe, que me disse que havia deixado algo para mim em cima da escrivaninha, cumprimentei também o Senhor Owen, seu novo marido. Ele era bom. Comparado a Louis era quase um anjo, minha mãe também parecia feliz ao lado dele, sem falar em Colin, que ficava todo alegre quando os dois saiam juntos para empinar pipas. Colin, agora, está diferente também, continua com os mesmos cabelos bagunçados e as sardas salpicadas no rosto pálido, mas com doze anos, já possui quase minha altura. Sempre foi inteligente demais para as crianças da sua idade, tem uma aptidão incrível para cálculo, mas é completamente apaixonado por artes. Sr.Owen tem comprado telas e o incentivado a pintar, embora na maioria das vezes seja apenas um amontoado de tinta sem sentido.

Tudo parece diferente, melancólico e nostálgico ao mesmo tempo. Nós reformamos a casa, ou melhor, minha mãe reformou, com a ajuda do dinheiro que enviei quando estava fora, mas lhe pedi que mantivesse meu quarto no primeiro andar, pedi que não retirasse nada de lá, que sequer mexesse nos papéis da lixeira, ou na última folha da máquina de datilografia, mesmo que eu raramente venha por aqui, ou melhor: mesmo que eu nunca mais planejasse voltar aqui.

O piso de madeira perdia um pouco a cor, rangia e fazia um barulho um tanto oco devido as solas das minhas botas. A colcha da cama continua velha e sem graça, tudo estaria intocado se minha mãe não houvesse limpado o espaço da poeira fina. Da cortina da janela posso ver a Lua, está minguante e solitária, não há estrelas. O céu está quase vazio e azul marinho intenso, escuro. Logo abaixo dele, luzes vermelhas e amarelas piscam dando indícios de lembranças, algumas já queimadas tentam ascender e falham, outras sequer tentam, mas todas anunciam o filme destaque da semana. Da janela posso ver boa parte da cidade, e em destaque, a que costumava ser o meu cenário favorito nas noites de primavera: o letreiro do Cinema Hook, onde eu posso jurar que se me sentar no peitoril da janela, ainda posso ver Blue, em seu horário de intervalo observando todas as luzes da cidade sentado sobre o letreiro, com o seu cigarro favorito na boca, fazendo anotações em seu bloquinho de papel enquanto o vento beija seus cabelos revestidos de noite dando-me uma visão generosa da extensão de sua testa e expressão pensativa. As vezes ele costumava movimentar as mãos em um ritmo criado em sua cabeça, enquanto em meu quarto, eu me distraia com aquela visão e sem que ele soubesse, eu criava várias histórias em meu diário, onde ele era o protagonista de todas elas. Ele sempre teve mesmo, o rosto de um protagonista, cujo a história teria final trágico e gosto amargo do amor dolorido misturado ao desespero da perda, onde alguém ia e alguém ficava, onde quem quer que estivesse por perto, no momento que ele parecesse se tornaria apenas um mero figurante. Ele sempre aparentou o tipo de protagonista de uma história em que, mesmo que você fechasse o livro, ele ainda estaria na sua mente assombrando e fazendo você desejar sua presença, mesmo sabendo que seria impossível.

Talvez ele não tenha sido o protagonista só das histórias criadas em minha mente, porque durante muito tempo ele foi o único em meu coração. O meu personagem favorito, a inspiração das minhas melhores histórias, tão real e palpável, como um dia nós fomos em 96. Blue era um paraíso sombrio, no qual eu sinto que teria enlouquecido se houvesse ficado de fora disto.

Querido BlueOnde histórias criam vida. Descubra agora