Um

45 13 6
                                    

Uma lufada de ar fria e salgada soprava em meu rosto, enchendo meus pulmões com a brisa úmida  do mar

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.


Uma lufada de ar fria e salgada soprava em meu rosto, enchendo meus pulmões com a brisa úmida  do mar.
Observo as ondas se quebrarem nas rochas costeiras, próximas a areia da praia. Mesmo com o carro em movimento eu conseguia observar cada detalhe daquele por do sol. Via a fina linha alaranjada no horizonte engolir o que restava do dia, tingindo as nuvens de cores espetacularmente vivas até o momento em que dariam lugar aos tons gélidos da noite.
As férias haviam acabado. Eu estava de volta ao lugar que venho a um ano me esforçando para chamar de casa. Não que eu odiasse Portland, eu odiava grande parte das pessoas que ali viviam, particularmente aquelas que me rondavam na escola.
Só desejava que as férias se alongassem um pouco mais, ainda não me sentia preparada emocionalmente para voltar ao ciclo social. Se bem que eu não podia ser considerada uma pessoa popular, era bem o oposto disso. Meu limitado clico de amigos, amigos de verdade se resumia em: Eve, a amiga de infância que se mudou comigo para Portland. Tracy, a ex rainha da escola que perdeu o título para a nova rainha megera da escola. E Trey, o capitão do time mais inteligente que eu já conheci. Um grupo tão compatível quanto água e óleo. A um ano atrás, na minha antiga vida em Atlanta, meu ciclo de amizade costumava ser um pouco mais extenso... Mas fica difícil manter os amigos quando eles te culpam por assassinato.
Basicamente eu e Rayle fomos jogadas em cima da pobre tia Lucinda, irmã mais nova do papai. Provavelmente é a doutora neurocirurgiã mais jovem do Oregon. Lucinda sempre foi a tia mais legal, viajava o mundo inteiro e basicamente não tinha com o que se preocupar, era estável. Agora ela precisou aprender como criar duas adolescentes quase que da noite para o dia. Eu não tenho do que reclamar dela, pois esta indo bem. Diria que Rayle também não tem muito do que reclamar, afinal ganhou toda a liberdade que uma garota de quinze anos sonha em ter. Sei que minha tia faz o que pode para nos agradar e para que nos dermos bem, mas minha irmãzinha abusa da bondade de Lucinda. Rayle esta praticamente irreconhecível para mim. Drogas, festas, álcool... Talvez até sexo. Ela se fechou para mim e trocamos apenas o número necessário de palavras por dia. Não a culpo por me evitar, não a culpo por ter medo de se aproximar, eu também teria medo da minha irmã se a situação fosse inversa e eu a assistisse causar um incêndio... E consequentemente nos tornar órfãs depois disso.
Aquela tarde ainda era um mistério para mim. Nunca entendi o que de fato aconteceu. Em um segundo eu e Caio discutíamos sobre sua traição, no outro eu estava com as mãos estendidas sob a mesa de carvalho tomada por chamas. Foi tudo tão rápido, o fogo engoliu tudo em seu caminho... Moveis, fotos, minha irmã do meio Rebeca, e por fim meus pais.
O cheiro forte de queimada ainda me assombrava, as vezes podia jurar que conseguia ouvir os gritos desesperados da minha família enquanto eu era incapaz de mover um músculo em meio as chamas, que se recusavam a me atingir e acabar com o sofrimento.
A viagem de volta para casa foi rápida de mais. Apesar de termos passado um mês no resort de férias a casa se encontrava em perfeito estado. Tudo em perfeita ordem e bem limpo, o exercito de faxineiras contratadas pela minha tia eram notavelmente eficientes. Não demora muito para cada um de nós se espalhar pelos cômodos. Tia Lucinda se reúne com a governanta e algumas empregadas, Rayle provavelmente está enfiada em algum lugar do porão preparando mais uma erva pra fumar. Tentei não pegar no pé dela, na verdade não sei mais como falar com a minha irmã, sempre que tento me aproximar ela corta qual quer tipo de simpatia.
Adentro o meu quarto, jogando a mochila de viagem em cima da cama perfeitamente arrumada pelas empregadas. No celular havia noticias do mundo lá fora, especificamente do meu pequeno mundo que agora se limita as fronteiras de Portland.
Vou até a escrivaninha branca ao lado da cama da mesma cor e acendo a luminária. A primeira coisa que consigo avistar na mesa são os comprimidos anti psicóticos receitados pelo Dr. Darlin. Não visitava o consultório do meu psiquiatra a mais ou menos oito anos, pois não havia muita necessidade disso, o sonâmbulismo havia praticamente parado, nada de alucinações ou de crises de raiva onde eu apagava e destruía alguma coisa. Eu estava bem... Até aquele incêndio. Já estava convencida de que não era louca, mas depois daquele dia eu passei a duvidar de minha sanidade.
                 
                           《~●~》

Saio do box enrolada na toalha, passo descalça pelo azulejo do banheiro até o quarto, deixando um fino rastro de água que pingava dos cabelos no chão.
Confiro as horas mais uma vez e tomo meu medicamento. Argh! Sempre odiei essas pílulas, me deixavam meio sonolenta. Ao lado do frasco estava meu celular, acendendo a cada nova notificação. Tracy estava louca por alguma notícia e Eve já havia deixado pelo menos dez ligações perdidas. Passo os olhos pela ultima mensagem e confirmo a primeira saída oficial do ano: Encontro no Vintage. Era basicamente um bar/bistrô temático, pois todo mês a decoração mudava para alguma época histórica. Esta era a parte norte do Vintage, pois na parte sul funcionava uma boate e club de stripper com o mesmo tema de época. O escolhido da vez é a Era Vitoriana.
Escolho um jeans azul quase preto, uma regata e por fim minha jaqueta.
Desço as escadas ao mesmo tempo em que Rayle as subia, ela pisava com força no chão deixando sua frustração transparecer. Ela me lança um breve olhar e preciso me encolher para não ser atropelada por ela, mas o fedô do rastro de cigarro que ela deixa no ar é o suficiente para eu adivinhar o seu mau humor.
- Qual o problema dela desta vez? – Pergunto fingindo desconhecimento a tia Lucinda, que enchia uma taça de vinho.
- Eu sinceramente não sei. Achava que o comportamento rebelde fosse o luto, mas fumar? – Vejo ela se sentar no sofá, frustrada e perdida – O que estou fazendo de errado?
- Não é você tia, esta fazendo tudo que pode... Mas Rayle... Acho que ela só precisa de tempo, mais tempo.
Digo tentando tranquilizar minha pobre tia. Não era culpa dela e sim minha, Rayle me viu incendiar nosso antigo jardim e não processou isso bem, eu também não processei mas sei que fui mais forte que ela.
Lucinda assente com a cabeça e dá um longo gole em seu vinho, levando metade do seu conteúdo. Gostaria de saber o que dizer a ela, de dizer que sinto muito por ela nunca mais poder ver seu irmão mais velho, que sinto muito jogar esta responsabilidade em seus ombros. Mas não podia dizer, precisava faze-la acreditar que estou indo bem e que estou superando, assim é menos uma adolescente problemática para ela se preocupar. Mentir quanto a isto estava sendo fácil, aprendi a ficar calada quando os fleches de alucinação vinham e graças as paredes grossas dos cômodos era quase impossível me ouvir destruir o quarto quando tenho um apagão ou por conta do sonâmbulismo. Minha tia passou a me trancar no quarto na hora de dormira cerca de alguns meses, pois constantemente assustava os empregados que me encontravam em algum lugar da casa, falando coisas estranhas ou no meio de um monte de tralha destruída.
Uma buzina aguda me fez saltar ao lado de minha tia, me trazendo para a realidade. O som é facilmente reconhecido por mim.
- Vai ficar bem sozinha? – Pergunto me levantando. Ela gesticula com as mãos para a taça.
- Claro, vai lá viver um pouco. Manda um beijo para Tracy e Eve por mim. – Ela abre o mais convincente dos sorrisos e nos despedimos. Me dirijo para a saída e encontro Eve assumindo o banco do motorista em sua Spin Chevrolet preta e Tracy encostada na porta de braços cruzados e um sorriso nos lábios.
- Olá, Maluca – Acena.
  

Meia Noite Onde histórias criam vida. Descubra agora