Dois

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Não demora muito para deixarmos o carro de Eve e cruzarmos a entrada para o movimentado Vintage

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Não demora muito para deixarmos o carro de Eve e cruzarmos a entrada para o movimentado Vintage. O cheiro salgado de batata frita quentinha e massa de pizza preenchia o ar do salão perfeitamente detalhado com madeira escura e mesas muito bem distribuídas. Os garçons trajavam ternos antiquados que lhes serviam de uniforme, no fundo havia um pequeno palco escuro, dando realce as letras de neon dourada que formavam o nome do estabelecimento. Este era o charme do Vintage: Conseguia ter personalidade e estilo próprio.
- É serio Amber, tem certeza que sua irmã não é adotada? – Pergunta Tracy, obviamente brincando e nos tirando sorrisos. Eu sabia bem qual era o problema de Rayle, mas não queria tocar neste assunto agora, queria dez minutos de fuga do olhar de aberração que minha irmã me lança, sinto-me assombrada por este tipo de olhar.
- O problema daquela garota é a falta de uma boa surra. – Diz Eve, antes que eu pudesse dar uma resposta menos violenta, porém isso nos arranca sorrisos.
- Acho que o problema dela é  estar sendo mimada de mais. – Digo por fim, nos sentamos em uma mesa quadrada e foleamos o cardápio com os olhos. Tracy porém, passa os olhos azuis cristalinos por todo o salão animado, com música e bebida. Seus olhos se detém em uma mesa em particular, pessoas se empurravam para estar próximos a bagunça. Um rapaz de cabelos escuros e jaqueta preta se encontrava em pé no alto da mesa, dançando animadamente com uma garrafa de tequila. Mulheres de todas as idades se exprimiam na tentativa de chamar a atenção dele. O rapaz não parecia ser muito mais velho do que a gente, não faço ideia de como conseguiu comprar bebida.
- Tem gente que se acha o dono do mundo – Implica Eve, voltando os olhos castanhos para o cardápio.
- Achei ele um gato – Comenta Tracy, olhando indiretamente para o rapaz que parece notar seu flerte e corresponde com um sorriso.
Balanço a cabeça concordando com Tracy, ao menos de longe ele me parecia bonito. Os olhos do rapaz passeiam pelo rosto pálido de lábios avermelhados da minha amiga, para o rosto perfeitamente bronzeado e meigo de Eve até chegar em mim. Um contraste de pele rosada com cabelos desalinhados e de um dourado desbotado. Ele se demora em mim, fazendo-me sentir uma leve tontura acompanhada de um breve – Porem forte – Tremor nas mãos.
Ele rapidamente se vira para a esquerda, pousando os olhos em uma mesa nos fundos com uma figura vestida quase totalmente de preto. Um outro rapaz, com uma pele pálida realçando todo aquele preto, cabelos escuros mas volumosos. O rapaz sentado na mesa logo encontra meus olhos, olhos que mesmo de longe reconhecia que eram azuis, olhos que me trazem de volta a tontura, mas desta vez o tremor e mais forte, forte o bastante para escurecer minha visão por completo e em menos de um instante tudo estava claro outra vez, sentia meu corpo envolvido por varias e varias camadas de tecidos que variavam entre tule e tafetá branco. Era tão real que eu conseguia sentir a temperatura do tecido com as mãos cobertas por uma frágil luva de renda da mesma cor. Até o som a minha volta parecia mais suave, como melodias de flauta doce. Tudo aconteceu na velocidade de uma piscada, só tenho tempo de levar os olhos para o garoto de olhos azuis sentado na mesa dos fundos, tudo que consigo ver é seu sobretudo escuro e uma cartola da mesma cor no topo de sua cabeça.
- Amber! Amber! – Os gritos de Eve me trazem a realidade do Vintage movimentado. Minhas mãos estavam geladas como a de um cadáver, não sei dizer quantos segundos se passaram desde que entrei na alucinação.
- Estou bem, estou bem, eu só...
- Teve mais uma das alucinações, não é? – Meu silêncio me entrega. -Eu sabia, tem certeza que não quer ver a psicóloga da escola? Me disseram que ela...
- Não! Não preciso de mais alguém me chamando de maluca. Eu estou bem, só devo ter esquecido alguma pílula. – Minto colocando os cabelos para trás e suspiro olhando ora Eve, ora Tracy. – Me prometam que não irão dizer nada sobre isso com a Lucinda, ela já tem muito com o que se preocupar.
Elas parecem concordar, mesmo com um certo descontentamento.
- Só não quero que te mandem pra algum reformatório, hospício ou sei lá o que eles fazem com garotas assim. Quem mais irá me ajudar a convencer a Senhorita Perfeita Becker que provas não são a única coisa da nossa vida? – Zomba Tracy, arrancando mais sorrisos, até mesmo de Eve.
Minha curiosidade fala mais alto e escondo o rosto no cardápio em uma tentativa ridícula de tentar espiar o garoto na mesa dos fundo, mas para minha frustração o lugar estava vazio. Direciono o olhar para a mesa onde o outro rapaz estava mas nem sinal dele. Por alguma razão vasculho o salão com os olhos, mas em vão. Eles não estavam mais lá.
- Quem era eles? – Pergunto baixo, me inclinando na direção de Tracy.
- Não faço ideia, mas despertou interesse. – Gargalha minha amiga
- Acho que não são boa coisa, quer dizer, olha o que um deles estava fazendo – Diz Eve, desaprovando os desconhecidos. Tracy por outro lado revira os olhos.
- Se chama diversão. Deveria tentar fazer isso mais vezes.
Mais gargalhadas completam o jantar. Havia muita conversa para ser colocada em dia, pois cada uma de nós havia passado o verão longe.
Me sentia bem com elas, eram uma das poucas pessoas que eu podia ser eu mesma sem ser tarjada de louca, esquisita ou surtada violenta.

                            《~●~》

Havia chegado em casa dez minutos depois do “toque de recolher" estipulado pela tia Lucinda. A casa já estava escura, com poucas luzes acesas nos cômodos que alguns poucos empregados davam os últimos toques de uma arrumação que para mim já estava perfeita. Tiro os sapatos para subir a escada em silêncio. No corredor para o meu quarto, vejo a porta entre aberta do quarto de Rayle, iluminado apenas por um abajur. A garota trajava um vestido solto roxo extremamente curto, mas ao menos usava um short jeans por baixo quase tão curto quanto o vestido e uma meia calça arrastão subindo pelas botas pretas. Ela se vira em minha direção, percebendo que eu a olhava incrédula tanto por suas roupas quanto pela maquiagem pesada e as argolas chamativas. Por um breve segundo consigo ver minha irmã de verdade ali, os olhos estavam vermelhos, talvez pela erva ou de chorar... Talvez as duas coisas. O olhar passa rapidamente de armagura para a habitual postura de indiferença. Sem demora ela desliza para a janela aberta do quarto e some mais uma vez na noite. Suspiro e tomo meu caminho para o quarto e me atiro na cama.

O balançar constante do chão dificultava minha caminhada, ou melhor minha corrida. O convés de tabuas escorregadias por conta da água salgada que invadia o navio a cada nova manobra do capitão também não ajudavam. Me agarro no mastro em busca de equilíbrio.
Vejo um oficial da Marinha Espanhola escalar até a borda do nosso navio e conseguir adentrar o mesmo. Ele abre um sorriso torto ao me ver e caminha em minha direção. Aperto o cabo da espada em minha mão, tentando mantê-la firme.
- Renda-se, Pirata!
- Hoje não, Oficial! – Devolvo sua ironia e avanço para cima dele girando a espada no ar e lhe desferindo um corte profundo no rosto. Ele rebate na mesma violência, chutando meu estômago até que eu bata as costas no mastro atrás de mim. Um estrondo acompanhado por uma súbita agitação no navio faz com que nós dois despenquemos no chão. Fomos atingidos mais uma vez. Aproveito o fato dele se arrastar até a espada para me levantar e atravessar a minha em suas costas até despontar em sua barriga. A gritaria a minha volta estava forte e a agitação densa, mas naquele momento parecia haver apenas eu e o oficial morto.
- O próximo será o seu capitão – Digo puxando a espada para cima, deixando o sangue pingar dela e escorrer junto a água do convés.
Sinto meu coração saltar do peito por alguma razão quando sinto uma mão se fechar em meu pulso, uma mão firme com um anel de prata grotesco.
- Senhorita! – Grita a governanta. Me fazendo acordar com o coração disparado e com o vento frio atravessando meu corpo.
- Onde e que... – Digo tremendo olhando em volta.
- A senhorita teve mais uma daquelas noites agitadas, não se trancou no quarto não é? – Diz uma das funcionárias apontando minha mão. Eu segurava uma faca, empunhando-a como se fosse uma espada em minhas mãos.
- Me desculpe – Solto a faca na bancada de pedra e tento esconder as poucas lágrimas que desciam pelo meu rosto.
- Não precisa se desculpar, a senhorita não tem culpa – Diz a governanta, cobrindo meu corpo com seu casaco de moletom. A outra sinaliza para que eu me sente na cadeira.
- Qual foi o pesadelo da vez? – Pergunta curiosa enquanto abre a geladeira e retira uma garrafa de leite.
- Piratas... Oficiais, havia sangue e explosões. – Explico enquanto ela esquentava o leite na panela. Já havia um tempo em que eu e a governanta Lyla nos dávamos bem, ela sempre guardava segredo quando me encontrava vagando pela casa em mais uma crise de sonambulismo.
- Os piratas atacaram você?
- Na verdade... Eu era um deles. – Respondo. Odiava essas crises, tinha medo de machucar alguém... De novo.

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