— Você pode sair quando quiser. — As palavras do policial não pareciam reais. Os olhos do sujeito eram calmos, mas os lábios pronunciavam cada sentença com pausas constantes, tentando explicar, e resumir, toda a conversa tida com aquela única frase.
O delegado França tinha uma personalidade um tanto quanto singular. Ele era desleixado, sempre vivia com incontáveis copos de café e maços de cigarro nos bolsos. O policial não parecia ter uma vida muito boa, mas quem sou eu para dizer isso? Minha vida virou de ponta à cabeça em questão de dias. Eu fui estuprada, obriguei-me a ir em uma consulta e dei de cara com meu maior pesadelo. Parece um tanto quanto irônica essa história. Mas, enfim, agora eu jazia trancada em um hospital psiquiátrico. Bem... não mais.
O tema da visita do delegado no hospital era incerto antes de toda conversa se desenrolar. França, antes de iniciar, já sacou um de seus cigarros, soltando um suspiro logo após um trago profundo. Eu não tinha nenhum preconceito contra quem fumava ou tinha qualquer tipo de vício. Os motivos para tais pessoas realizarem determinadas coisas não era da minha conta. Eu mal conseguia lidar com a minha própria vida, então para que se preocupar com o cotidiano dos outros? Portanto, voltemos ao assunto principal daqui. O policial me visitou.
Sentado na cadeira de metal, o delegado observava o exterior do grande Hospital Psiquiátrico Rufford. O motivo de estarem naquele local foi determinado pela enfermeira Gabriela, com uma cara séria e algumas palavras como "Não é permitido fumar aqui dentro"; porém, quando sentaram para dialogar, França soltou um comentário: "Se reclamarem, coloco minha cabeça pra fora dessa janela.". Eu nem sequer esbanjei um sorriso com o senso de humor do quarentão. Os olhos do homem eram cansados, o que podia demonstrar certos problemas de insônia. Outra coisa que percebi foi que sua pele não era muito condizente com sua idade; aparentando anos a mais para a conta. Este, e a rouquidão na voz, já conotavam o uso de longa data da nicotina. Por que eu sabia disso? Realmente, eu não sei...
Mas, enfim. O delegado demorou algum tempo para, de fato, começar a falar. As frases tentavam fazer algum sentido na minha mente, mas era difícil acreditar. Era realmente impossível o motivo pelo qual eu poderia sair daquele instituto. Porém, mesmo saindo, eu precisaria fazer uma consulta semanal naquele mesmo lugar. Eu apenas esperava que eu não encontrasse o doutor Maciel novamente. Fazia tempo que Carlos não aparecia para conversar comigo. Eu poderia achar estranho isso, mas apenas dava graças a Deus de não ter que encontrar com ele. Entretanto, ao ouvir toda a proposta de França, aceitei sem titubear.
— Muito bem, Michelle. Eu só preciso que assine isso aqui. — O delegado tirou uma folha de uma pasta, colocando na pequena mesa redonda que havia à nossa frente. Li o documento por cima, focando nas palavras que importavam para mim; como "Michelle Albuquerque estará livre para cumprir tratamento em casa.". Assinei as linhas pontilhadas com a caneta emprestada do policial.
— E agora? — perguntei, ansiosa.
— Agora você tem que esperar. Vou entregar esse documento para o juiz e logo peço para te buscarem aqui. — França guardou a folha na pasta, e levantou. Ofereceu sua mão para me cumprimentar, mas eu simplesmente recusei, abanando a cabeça. Ele, então, foi embora.
Eu não podia acreditar no que estava acontecendo. Eu, livre? Parecia impossível. Eu poderia começar minha vida de novo, trabalhar, até talvez estudar. Meu desejo mais íntimo era não ter que encontrar com Maciel nunca mais na minha vida. Os ruídos daquela noite ainda ecoavam na minha mente perturbada. E então, como se a vida ouvisse meus pensamentos e caçoasse da minha face, lá estava ele, à minha frente. Não vi a sua chegada, aparentemente estava muito ocupada em minhas ideias, com os olhos no jardim externo.
— Gostou do meu presentinho? — Ele disse, entonando a voz de forma sádica. — É muito difícil fazer... qualquer coisa, com essas câmeras observando, não? — O sorriso do sujeito era nojento. Eu queria poder esmurrá-lo até a morte ali naquela mesa. Mas, eu ainda tinha minha sanidade, e não queria gastá-la atrás das grades pelo resto de minha vida. Continuei calada, contendo minha raiva. Não valia a pena desperdiçar minha fala com aquele monstro. — Vamos lá, meu bem. Não fique assim. Sei que faltam alguns dias pra você sair daqui, mas logo já poderemos nos encontrar lá fora. — O riso de deboche do doutor doía em meus ossos. Eu não aguentava nem mais um minuto sequer com aquele homem.
E, limitada a soltar um suspiro longo, levantei-me, caminhando em direção ao meu quarto. Mas, depois de alguns passos, aquela voz voltou a falar.
— Você leu o documento, não leu? — A voz ríspida, grave, fez-me parar. — Então aposto que você sabe que as consultas, feitas aqui no hospital, podem ser realizadas na casa do paciente, caso eu julgue como algo mais benéfico. — Pude sentir o sorriso de Carlos, mesmo de costas para ele. — E, Michelle, tenho certeza que nossos encontros na sua casa serão muito mais benéficos para ti.
Percebe, leitor? Muitas vezes quando recebemos uma notícia que julgamos como boa, ela pode se tornar algo trágico, de uma hora para outra. Não digo que isso seja a lei de tudo, mas com certeza é um ponto de equilíbrio. Veja bem, na nossa vida é preciso ter um equilíbrio de todas as coisas. Como meu pai sempre diz, "Tudo que é demais, é ruim". Eu concordo com isso. Porém, no caso da nossa protagonista, não tinha nenhum motivo para ela receber essa "ótima notícia". Bem, não era nem uma notícia boa, mas ela a julgou de forma errônea. Se, por um acaso, ela tivesse lido o documento inteiro e visse essa cláusula imposta, era muito provável que recusasse. Então, sem culpar a sorte ou destino, e muito menos a vida, culpemos a falta de cautela.
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O tempo logo depois
Mystery / Thriller"Mantenha a sanidade. Apenas tente." Ela esteve frente à frente com o seu pior pesadelo. Olhou-o nos olhos até seu coração se dilacerar. E, no fim, sua mente já tão perturbada perdeu a única coisa que ela achava que seria intocável: ela chegou...