Eu me senti impotente. Aquelas palavras reviraram meu interior e mexeram com minha cabeça. Aquilo não podia estar acontecendo. Eu não sabia se sentia nojo ou raiva daquele monstro que jazia na minha frente, alternando entre a vontade de vomitar e de estrangular cada parte de seu pescoço. Isso não podia estar acontecendo... ou podia?
E se fosse totalmente imaginação minha eu achar que ele era o sujeito que me raptou? Poderia ser coincidência, eu já ouvira falar de pessoas idênticas.... Mas... aquele cabelo seboso com os horrorosos olhos castanhos, a barba malfeita e um sorriso conotando segundas intenções me faziam reviver o pior momento da minha vida. Eu podia sentir a respiração ofegante em minha nuca, e toda vez que ele sorria, eu checava se minhas mãos estavam presas. A mordaça em minha boca ainda figurava a razão do meu silêncio, causando um pânico que transcorria da minha última à primeira vértebra da coluna. Era horrível.
Meus músculos se contraíam em cada palavra pronunciada do psicólogo, com uma dicção que demonstravam uma falsa e singular simpatia. Era possível notar muita coisa implícita em seu comportamento mentirosamente amigável. Porém, se ele fosse realmente "O piedoso", suas frases estavam me convencendo do contrário.
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— Seu canalha. — Minha fraca voz saiu ríspida como um serrote, trazendo uma surpresa esperada no rosto do doutor.
— Eu entendo que você está passando por um momento difícil. Muitas pessoas depois de vivenciarem um estupro, começam a ver a imagem do vilão em pessoas minimamente parecidas com ele. — Ao contrário das minhas, suas palavras eram acentuadas e pausadas com uma invejosa calma; logo depois, Carlos desencostou do sofá, cruzou seus braços e jogou novamente aquele sorriso com uma leve pitada de escárnio em minha direção. — Mas então, pode me contar como aconteceu?
Ao ouvir aquilo, eu me convenci.
— Doutor Carlos. — Eu disse esse nome com tanto esforço, que soou como palavras cuspidas — Eu nunca falei que fui estuprada...
Logo o sorriso malicioso do homem sumiu. Sua expressão se tornou completamente atônita, como se uma criança estivesse esperando para levar umas boas palmadas. Os olhos se arregalaram, sua boca balbuciou algumas palavras inaudíveis, mas como um locutor treinado, o psicólogo respirou fundo e começou a se justificar.
— Quando você trabalha com casos de traumas terríveis, um sexto sentido brota na sua mente, conseguindo supor e adivinhar coisas escondidas...
Mesmo aquela resposta sendo uma desculpa esfarrapada, sua eloquência quase me fazia acreditar nele. Seus olhos logo foram retornando à calma habitual e um largo sorriso brotou no seu rosto. Notei uma pressa dissimulada em sua postura quando olhou para o relógio.
— Acho que seu tempo acabou, Michelle... — Caminhou para sua mesa e sentou na cadeira preta acolchoada.
Consegui me levantar com um grande esforço, andei apressadamente em direção à porta, parando a um metro dela.
— Doutor... — Mesmo com tanta força que fazia para dizer esse nome, ainda saía com aflição. — Você tem uma casa?
— Eu moro com minha mãe, fica mais fácil pagar as contas.
Com essa última resposta, saí de lá com uma certeza: era ele.
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Eu morava em um apartamento alugado com o dinheiro que ganhava do meu emprego. Porém, não estava indo mais trabalhar, eu mal conseguia sair de casa sem ter um ataque de pânico. Era um prédio simples, amarelado. As janelas marrons sujavam ainda mais a aparência do humilde edifício, como sardas em um rosto. Tinha quatro andares e, por esse motivo, não havia elevador. As escadas gastas eram formadas com piso bege contendo as bordas de mármore negro, uma tentativa de deixa-las mais sofisticadas. Meu apartamento era no segundo andar, a porta de madeira simples abrigava o número oito de metal, com a fechadura e maçaneta de aço pintado.
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O tempo logo depois
Misterio / Suspenso"Mantenha a sanidade. Apenas tente." Ela esteve frente à frente com o seu pior pesadelo. Olhou-o nos olhos até seu coração se dilacerar. E, no fim, sua mente já tão perturbada perdeu a única coisa que ela achava que seria intocável: ela chegou...