II
A viuvez tornou ainda mais isolada e recolhida a existência de Emília, acrescentando-lhe a indiferença e desapego do mundo.
O único elo que a prendia à terra eram seus filhos; mas tinha o pressentimento de que não permaneceria muito tempo com eles. O marido a chamava; abandonou-se àquela atração que a aproximava do ente a quem mais amara, e a desprendia aos poucos do espólio que ainda a retinha neste vale de lágrimas.
Só uma inquietação a afligia, ao pensar no próximo termo de seu infortúnio; era a lembrança do desamparo em que ia ficar sua filha Aurélia, já nesse tempo moça, na flor dos dezesseis anos.
De sua família, não podia Emília esperar arrimo para a órfã. As relações, cortadas por ocasião de seu casamento, nunca mais se haviam reatado. Os parentes continuavam a considerá-la mulher perdida; e evitavam o contágio de sua reputação.
Do sogro, também já recebera a pobre viúva o desengano. Depois do falecimento do marido e logo que a dor lhe permitiu outros cuidados, escrevera ao Lourenço de Sousa Camargo, revelando-lhe o segredo do casamento, e implorando sua proteção para os filhos de seu filho.
O fazendeiro, da mesma forma que os parentes de Emília, não acreditou na realidade de um casamento oculto até àquela época, e do qual não aparecia documento ou outra prova.
A carta da viúva só lhe revelou a continuação de relações que ele supunha deste muito extintas.
Atinando que fora a influência dessa mulher a causa da desobediência do filho, lançava-lhe a culpa da desgraça que sobreveio, esquecido de que ninguém sofrera tanto como ela pois além da viuvez, a morte do marido deixava-lhe a pobreza e a desonra.
Ainda assim, nessa disposição de ânimo, foi generoso o Camargo. Mandou entregar a Emília um conto de réis; dinheiro cru e seco sem uma palavra de consolo ou de esperança. A pessoa que o levou à viúva, fez-lhe sentir que tão avultada esmola devia livrar o fazendeiro de futuras importunações.
O Emílio, que podia ser o amparo natural da irmã, quando viesse a faltar-lhe a mãe, não estava infelizmente nas condições de receber o difícil encargo. Ao caráter irresoluto do pai, juntava ele um espírito curto e tardio. Apesar de haver freqüentado os melhores colégios, achava-se aos dezoito anos tão atrasado como um menino de regular inteligência e aplicação aos doze anos.
Reconhecendo sua inaptidão para alguma das carreiras literárias, Emília lembrara-se de encaminhá-lo à vida mercantil. Por intermédio do correspondente do marido e pouco tempo depois da morte deste, fora o rapaz admitido como caixeiro de um corretor de fundos.
Por mais esforços que fizesse o pobre Emílio, não lograva destrinçar as efemérides financeiras do movimento dos fundos públicos e oscilações do mercado monetário. Isto que aí qualquer filhote de zangão, a quem não desponta ainda o bigode, avia em duas palhetadas, era para Emílio ciência mais abstrusa do que a astronomia.
Chegava a casa com a sua tábua de câmbios, o preço corrente,- a cotação da praça e as notas que lhe havia dado o corretor. Sentava-se à mesa; preparava o tinteiro e o papel, mas não havia meio de começar. Seu espírito embrulhava-se por modo na tal meiada, que não atava nem desatava. Ao cabo chorava de raiva.
Corria então Aurélia a consolá-lo. Sabia ela já a causa daquele pranto, cuja explicação uma vez lhe arrancara à força de carinho e meiguice. Tirava-o do desespero, animava-o a tentar a operação, e para suster-lhe os esforços ia auxiliando-lhe a memória e dirigindo o cálculo.
A natureza dotara Aurélia com a inteligência viva e brilhante da mulher de talento, que se não atinge ao vigoroso raciocínio do homem, tem a preciosa ductilidade de prestar-se a todos os assuntos, por mais diversos que sejam. O que o irmão não conseguira em meses de prática, foi para ela estudo de uma semana.
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Senhora ♥ José de Alencar ♥
RomanceCaí no Enem! Siga o meu perfil ♡ Senhora é um romance urbano do escritor brasileiro José Martiniano de Alencar, publicado em 1874, na forma de folhetim. É um dos últimos romances de Alencar, publicado três anos antes da morte do escritor. Da mesma...