III - TERCEIRA PARTE

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III

Frutas da estação: abacaxis, figos e laranjas seletas, rivalizando com as maçãs, peras e uvas de importação, ornavam principalmente a refeição meridiana que os costumes estrangeiros substituíram à nossa brasileira merenda da tarde, usada pelos bons avós.

Havia também profusão de massas ligeiras, como empadinhas, camarões e ostras recheadas; além de queijos de vários países e doces de calda ou cristalizados. Os melhores vinhos de sobremesa desde o Xerez até o Moscatel de Setúbal, desde o Champanhe até o Constança, estavam ali tentando o paladar, uns com seu rótulo eloqüente, outros com o topázio que brilhava através das facetas do cristal lapidado.

- Não tenho a menor disposição! disse Fernando obedecendo ao gesto de Aurélia e sentando-se à mesa.

- Ora! disse a moça com volubilidade. Para provar frutas e doces não é preciso ter fome; faça como os passarinhos. O que prefere? Um figo, uma pêra, ou o abacaxi?

- É preciso que eu tome alguma cousa? perguntou Fernando com seriedade.

- É indipensável.

- Nesse caso tomarei um figo.

- Aqui tem; um figo e uma pêra; é apenas um casal.

Seixas inclinou a cabeça; colocou o prato diante de si, e comeu as duas frutas, pausada e friamente, como um homem que exerce uma ação mecânica. Nada em sua fisionomia revelava a sensação agradável do paladar.

Aurélia que esmagava entre os lábios purpurinos bagos de uva moscatel, seguia com os olhos os movimentos automáticos de Fernando, e se não adivinhava, confusamente pressentia o motivo que atuava sobre seu marido.

Ergueu-se então da mesa, e saindo fora, à beirada da casa, onde já fazia sombra, divertiu-se em dar de comer aos canários e sabiás, que festejaram sua chegada com uma brilhante abertura de trinados e gorjeios.

Pensava Aurélia que sua presença porventura acanhava ao marido; e buscava aquele pretexto para arredar-se um instante e deixá-lo mais livre de cerimônias. Desvaneceu-se porém essa idéia do seu espírito, quando espiando pela fresta da janela, viu Seixas imóvel, com os olhos fitos na parede fronteira, e completamente absorto.

Depois do lanche, Aurélia convidou o marido para darem uma volta pelo jardim; mas havia senhoras nas janelas da vizinhança, e a moça não quis expor-se aos olhares curiosos. Ela não era a noiva feliz e amada; mas as outras a supunham, e tanto bastava para que seu pudor a recatasse às vistas dos estranhos.

Voltaram pois à saleta.

Aí andaram a borboletear de um a outro assunto, mas apesar do desejo que tinham, de prolongar a conversação, ou talvez por essa mesma preocupação que os distraía, não encontraram tema para divagar.

Afinal recaíram nas fotografias. Desta vez foi o álbum dos conhecidos que forneceu matéria. Em um dos primeiros cartões figurava o Lemos, cuja aparição coincidiu com esta observação de Aurélia:

- O álbum das pessoas de minha amizade, eu o guardo comigo. Estes são álbuns de sala, tabuletas semelhantes às que têm os fotógrafos na porta.

- Mas não apresentam de certo as antíteses curiosas das tabuletas. Os tais senhores parece que o fazem de propósito; não há mais perfeita democracia.

Seixas, emérito conhecedor da Rua do Ouvidor, começou a especificar alguns dos contrastes de que se recordava; abstemo-nos porém de reproduzir suas observações, que ressentiam-se de singular mordacidade.

Esse tom cáustico não era natural ao mancebo, cuja índole benévola e afável nunca passava de uns toques de fria ironia. Ele próprio já notara em si essa alteração de seu caráter, e achava um sainete especial em saturar-se do fel que tinha no coração.

Senhora ♥ José de Alencar ♥Onde histórias criam vida. Descubra agora