II - QUARTA PARTE

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II

Aconteceu uma noite cair a conversa em assunto de literatura nacional.

Fato raro. Entre nós há moda para tudo nos salões; menos para as letras pátrias, que ficam à porta, ou quando muito vão para o fumatório servir de tema a dois ou três incorrigíveis.

Nesse dia fez-se uma exceção. Alguém, que tinha a prurir-lhe nos lábios a condenação dogmática de um livro que lera recentemente, apesar de publicado desde muito, aproveitou o momento para essa execução literária.

- Já leram a Diva?

Respondeu um silêncio cheio de surpresa. Ninguém tinha notícia do livro, nem supunham que valesse a pena de gastar o tempo com essas cousas.

- É um tipo fantástico, impossível! sentenciou o crítico.

Acrescentou ele ainda algumas cousas acerca do romance, cujo estilo censurou de incorreto, cheio de galicismos, e crivado de erros de gramática. O desenlace especialmente provocou acres censuras.

A crítica, por maior que seja a sua malignidade, produz sempre um efeito útil que é de aguçar a curiosidade. O mais rigoroso censor mau grado seu presta homenagem ao autor, e o recomenda.

Pela manhã Aurélia mandou comprar o romance; e o leu em uma sesta, ao balanço da cadeira de palha, no vão de uma janela ensombrada pelas jaqueiras cujas flores exalavam perfumes de magnólias.

À noite apareceu o crítico.

- Já li a Diva, disse depois de corresponder ao cumprimento.

- Então? Não é uma mulher impossível?

- Não conheço nenhuma assim. Mas também só podia conhecê-la Augusto Sá, o homem que ela amava, e o único ente a quem abriu sua alma.

- Em todo o caso é um caráter inverossímil.

- E o que há de mais inverossímil que a própria verdade?- retorquiu Aurélia repetindo uma frase célebre. Sei de uma moça... Se alguém escrevesse a sua história, diriam como o senhor: "É impossível! Esta mulher nunca existiu." Entretanto eu a conheci.

Mal pensava Aurélia que o autor de Diva teria mais tarde a honra de receber indiretamente suas confidências e escrever também o romance de sua vida, a que ela fazia alusão.

Nessa noite, entre as novidades do dia que deram tema à palestra, houve uma que bastante afligiu Aurélia. Corria que Eduardo Abreu estava dominado pela idéia do suicídio. Um de seus camaradas que vinha com ele de Niterói, o impedira de precipitar-se ao mar da borda da barca; outro o surpreendera com um revólver no bolso.

No dia seguinte houve espetáculo no teatro lírico. Aurélia escreveu a Adelaide Ribeiro um bilhete oferecendo-lhe o seu camarote e prometendo-lhe sua companhia. As duas senhoras não tinham relações íntimas; apenas haviam trocado entre si as visitas de rigor depois do casamento.

Aurélia aproveitou o pretexto da ópera nova não para estreitar essas relações cerimoniosas, mas ter ocasião de falar com o Dr. Torquato Ribeiro.

Às oito horas, quando Aurélia entrou no camarote pelo braço de Seixas, já encontrou Adelaide com o marido.

As duas moças lembrando-se que iam passar a noite face a face, instintivamente sem propósito, por uma irresistível emulação, haviam-se esmerado. Ambas estavam no esplendor- de sua beleza. Mas curiosa antítese: Adelaide, a pobre, vinha no maior apuro do luxo, com toda a garridice e requintes da moda. Aurélia, a milionária, afetava extrema simplicidade. Vestiu-se de pérolas e rendas; só tinha uma flor, que era a sua graça.

Senhora ♥ José de Alencar ♥Onde histórias criam vida. Descubra agora