V - TERCEIRA PARTE

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V

No dia seguinte, depois do almoço, lembrou-se Aurélia de sua resolução da véspera.

Àquela hora o marido estava na repartição, e já o criado devia ter acabado de fazer o serviço dos quartos; por conseguinte podia sem despertar a atenção realizar seu intento.

Deu volta à chave da porta que um mês antes fechara-se entre ela e seu marido; abriu de leve o reposteiro de seda azul para certificar-se de que ninguém havia no aposento; e trêmula, agitada por uma comoção que lhe parecia infantil, entrou naquela parte da casa, onde não tornara depois de seu casamento.

Que horas encantadoras passara ela ali nos dias que precederam a cerimônia, quando ocupava-se com o preparo e adereço desses aposentos, destinados ao homem a quem ia unir-se para sempre, embora para dele separar-se por um divórcio moral, que talvez fosse eterno!

O sentimento que possuía Aurélia e a dominava naquele tempo, ela própria não o poderia definir tão singulares eram os afetos que se produziam em sua alma.

Ao passo que ela acariciava com um acerbo requinte a desafronta de seu amor ludibriado, e prelibava o cáustico prazer da humilhação desse homem, que a traficava, vinham momentos em que alheava-se completamente dessa preocupação da vingança, para entregar-se às fagueiras ilusões.

Tinha sede de amor; e como não o encontrava na realidade, ia bebê-lo a longos haustos na taça de ouro, que lhe apresentava a fantasia. Essas horas via-as com seu ideal; e eram horas inebriantes e deliciosas.

Nelas foi que a jovem mulher se esmerou em ornar estas salas e gabinetes. Sonhava que iam ser habitados pelo único homem a quem amara, e que lhe retribuía com igual paixão. Queria que esse ente querido achasse como que entranhada na elegância dos aposentos, sua alma palpitante, que o envolvesse e encerrasse dentro em si.

Ao rever o lugar e objetos, que tinham sido companheiros daquelas cismas e ardentes emoções, Aurélia cedeu um instante à mágica influência de recordos, os quais se desdobravam como as névoas aljofradas, que empanam a luz do sol e mitigam-lhe a calma.

Arrancando-se afinal a esse enlevo de um passado, que nem ao menos era real, e só existira como uma doce quimera, a moça percorreu então o aposento, e volveu um olhar perscrutador.

Notou o que aliás era bem visível. O toucador estava completamente despido de todas as galanterias, de que ela o havia adornado com sua própria mão. Parecia um móvel chegado naquele instante da loja. Os guarda-roupas, cômodas, secretárias, tudo fechado, e na mesma nudez, que denunciava falta de uso.

- É por isso!... murmurou a moça consigo. O criado não suspeita o motivo, e atribui à mesquinheza.

Uma das mais tocantes puerilidades de Aurélia, quando sonhava o casamento com o homem amado, fora a igualdade das fechaduras de todas as partes e móveis do uso especial de cada um. Duas almas que se unem, pensava ela em sua terna abnegação, não têm segredos e devem possuir-se uma à outra completamente.

Quando reuniu em argolas de ouro, as duas séries de chaves ao todo iguais, sorriu-se e imaginou que na noite do casamento, quando seu marido se lhe ajoelhasse aos pés, ela o ergueria em seus braços para dizer-lhe:

- Aqui estão as chaves de minha alma e de minha vida. Eu te pertenço; fiz-te meu senhor; e só te peço a felicidade de ser tua sempre!

Em que abismo de dor e vergonha se tinham submergido essas visões maviosas, já o sabemos. Ninguém suspeitou jamais nem ela revelou nunca, a voragem de desespero oculta sob aquele formoso colo, que parecia arfar unicamente com as brandas emoções do amor e do prazer.

Senhora ♥ José de Alencar ♥Onde histórias criam vida. Descubra agora