X - TERCEIRA PARTE

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X

No pavimento térreo, ao lado esquerdo, havia na casa das Laranjeiras uma varanda de estilo campestre, decorada com palmeiras vivas e corbelhas de parasitas.

Servia de sala de bilhar, e aí costumava Aurélia e o marido passarem a tarde, quando o tempo não convidava ao passeio no jardim.

Aí foi Seixas encontrar dois grandes quadros, colocados nos respectivos cavaletes. Na tela viam-se os esboços de dois retratos, o de Aurélia, e o seu, que um pintor notável, êmulo de Vítor Meireles e Pedro Américo, havia delineado à vista de alguma fotografia, para retocá-lo em face dos modelos.

Ao olhar interrogador do marido, Aurélia respondeu:

- É um ornato indispensável à sala.

- Julga que seja indispensável? Parecia-me ao contrário inconveniente reproduzir ainda que seja por esse modo, uma presença que tanto lhe deve importunar.

- Não se tira retrato d'alma. Felizmente!... observou Aurélia com o misterioso sorriso que desde certo tempo acompanhava essas palavras de sentido recôndito.

Seixas prestou-se passivamente ao papel de modelo. As sessões à tarde tinham ficado reservadas para ele a fim de não estorvar-lhe o trabalho da repartição.

Aurélia retirou-se, deixando-o em plena liberdade.

No dia seguinte, pela manhã, quando o pintor voltou para trabalhar em seu retrato, a moça antes de tomar posição fez-lhe suas observações acerca da expressão fria e seca da fisionomia de Seixas.

- Pintei o que vi. Se deseja um retrato de fantasia, é outra cousa, respondeu o artista.

- Tem razão; meu marido não anda bom. É melhor interromper seu trabalho por alguns dias; eu lhe mandarei aviso quando for ocasião.

Essa tarde Seixas achou Aurélia inteiramente outra da que era nos últimos tempos. Sua expressão meiga, e sobretudo a candura e singeleza de seu modo, restauraram em sua memória a imagem da formosa menina de Santa Teresa, a quem amara outrora.

Deixou-se aliciar por essa ilusão, embora estivesse bem convencido de que a veria dissipar-se de repente, e dolorosamente como as outras. Mas sua alma tinha necessidade de repouso e ainda mais do conforto de uma crença consoladora; abandonou-se àquela doce quimera e quis persuadir-se de que revivia um idílio de seu passado.

Aurélia trouxe a conversa para os assuntos que mais podiam seduzir um espírito poético e elegante como o de Seixas.

Falou de música, de versos, de flores e de artes. Quando a ironia não lhe acerava a palavra, ela tinha uma exuberância de afeto e ternura que manava de seus lábios e derramava em torno de si uma atmosfera de amor.

À noite tocou piano e cantou os trechos prediletos do marido.

Não era ela decerto, apesar dos elogios de D. Firmina, uma mestra, nem mesmo uma discípula exímia e correta. Mas poucas teriam seu gênio artístico; ela tocava por inspiração, e o canto eram as emoções de sua alma que ressoavam espontaneamente como os harpejos da brisa no seio da floresta.

Os dias seguintes correram na mesma doce intimidade. À tarde no jardim, ou admiravam juntos as flores, ou liam no mesmo livro algum romance menos interessante do que o seu próprio.

Seixas incumbia-se da leitura, e Aurélia escutava sentada a seu lado. Às vezes, ou porque se distraísse um momento, ou por sofreguidão de antecipar a narração, reclinava-se para correr os olhos pela página, onde ia brincar um anel de seus cabelos castanhos.

Foi no meio de uma dessas cenas que o pintor apareceu de novo. Seixas deu sinal de contrariedade, que a gentileza de Aurélia conseguiu desvanecer. Conservou durante a sessão a mesma expressão afável e graciosa, que pouco antes iluminava seu nobre semblante, e que fora a sua fisionomia de outrora, quando a subversão da existência ainda não o tinha revestido de gravidade melancólica.

Senhora ♥ José de Alencar ♥Onde histórias criam vida. Descubra agora