Fica

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capítulo cinco

fica


Nós entramos na nossa segunda semana de convivência sem problemas, e eu me sentia confiante o bastante para afirmar que já estávamos em um certo nível de amizade. Eu só não sabia qual.

À medida que a neve caía, cobrindo as coisas pouco a pouco, nós saíamos pra ir até o lago arremessar pedras, deixávamos pegadas molhadas no chão ao voltar para dentro de casa, eu fazia chocolate quente e a gente ia para o quarto dele — que se tornou o melhor cômodo para nós —, para fazer juntos o que desse na telha.

No dia em questão, eu lembro que estava mais frio do que antes, então eu havia me escondido sob uma pilha de cobertores, entretido enquanto observava Sehun jogar videogame e aquecendo as mãos com uma xícara de chocolate quente com canela.

Ele parecia muito atento, e talvez um pouco receoso, enquanto guiava o personagem por um cenário sombrio, fugindo de um monstro deformado que chamava ele de porquinho e cuja voz me dava arrepios. Era um jogo de terror, e isso me fez pensar que ele devia ter uma coleção deles, então os filmes preferidos dele provavelmente eram de terror também.

Eu me assustava mais do que Sehun nos momentos de tensão do jogo, e quase queimei a mão umas três vezes, balançando-a até o chocolate quase derramar pelas bordas da xícara a cada salto amedrontado. Depois de me machucar é que eu decidi largar a xícara para esperar que a bebida esfriasse.

Não queria olhar muito para a tela para depois não sonhar com aquelas coisas horrorosas, mas era inevitável. O jogo, Outlast, meio que induzia quem quer que estivesse na frente da tela a olhar, participando indiretamente de tudo aquilo.

Eu ficava pensando nas minhas rankeadas no LOL e me perguntava o que diabos eu estava fazendo no meio daquilo ali, quando a coisa gráfica mais emocionante que eu presenciava em jogos eram as raríssimas pentakills do meu time e, talvez, umas cenas violentas no Dark Souls III, o vício secreto do meu irmão.

Eu não tava acostumado com aquele gore todo, com aqueles monstros deformados zanzando de um lado para o outro na tela. Para ser mais específico, eu estava cogitando me enfiar embaixo do cobertor e fugir daquilo, mas não queria parecer covarde. Sehun já havia deixado a lanterna acesa em respeito ao meu medo do escuro, então estava fora de cogitação ficar morrendo por causa de um jogo, mesmo que ele tivesse sido feito pra colocar medo nas pessoas.

Fiquei buscando uma forma de me distrair, de novo resmungando por não estar com meu celular e, por fim, peguei o caderno, que estava no chão perto da perna dele. Tirei a caneta da espiral, peguei o copo com a lanterna dentro e o coloquei perto de mim enquanto buscava uma página em branco aleatória, começando a rabiscar o que quer que desse vontade. Acabei desenhando uma montanha de formato duvidoso e um solzinho sorridente. Aquilo me lembrava a minha infância e pré-adolescência e, consequentemente, me lembrava minha paixão platônica dos tênis de LED.

Numa das aulas de Arte, a professora nos pediu para fazer um desenho livre. Eu desenhei um laguinho com uma árvore rosa, mas ele foi além, desenhou um Sol com os chifres do Diabo e um gato com uma coroa de imperador. Achei genial, mas a professora não gostou muito e reclamou com os pais dele. Na infância, parece que tudo é motivo para conversar com seus pais.

Eu achei o desenho dele bem legal, assim como toda a classe, mas não tive coragem de resgatá-lo do lixo, onde a professora o colocou — simbolicamente. Quem o tirou de lá foi o ajudante daquele mês, muito mais corajoso que eu, e ele também entregou o desenho de volta para o garoto e viu de perto o sorriso lindo dele.

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