04🔬

3.2K 526 160
                                    

— Você não ouviu nada! — Intercedi, lançando a menor um olhar letal, mas como o habitual, nada poderia atingir o escudo de maldade que Yoori havia construído em torno de si mesma. Nada do que eu dissesse infiltraria a muralha de fofura em torno dela e a deixaria mal humorada, triste ou brava.

Ela só parecia ter uma reação, a euforia e ela expressava bem isso carregando um sorriso sincero nos lábios e uma energia revigorante.

— Eu deveria entrar? — Yoori praticamente se convidou e minha mãe acenou com a cabeça, sorrindo em seu eye-smile, uma das características herdadas por mim.

— Já vou avisando que não vou brincar com você hoje. — Me adiantei quando a mesma me seguia até minha residência.

— Sem problemas. Só vou pegar uns biscoitinhos e vou te deixar descansar.— Justificou, me fazendo estreitar os olhos, duvidoso.

O que deu nela?

— Não quer brincar hoje? — Insisti.

— Acho que isso ficou pra trás, né? Eu te chateava com as minhas brincadeiras, não vou fazer mais. — Ela abriu um sorriso cintilante em minha direção e se apressou, apertando os passos e chegando a minha casa antes de mim.

—Vou subir para descansar. — Aviso, quase como um adeus.

— Bom descanso, Chim Chim!— Eu a vi acenar em minha direção antes de enfiar um biscoito de chocolate na boca.

Eu me jogo na cama depois de tirar a mochila e o moletom. Como de costume, deixei a janela aberta. Eu e Yoori costumamos nos encarar antes de dormir, passando e repassando zilhões de vezes cada detalhe do rosto do outro, cada traço que nos aproximava tanto. Era nesses momentos, quando o Sol já não brilhava acima de nós e quando a Lua adquiria o comando do céu, eu me sentia num espaço vazio no espaço, só eu e Yoori, nos observando a pelo menos meio metro de distância de uma janela à outra, nossos corpos flutuando num vácuo sem a ação da gravidade.

Aquele era meu momento mais íntimo e eu sempre fiz questão de compartilhá-lo com a minha melhor amiga.

Deixei que meus lábios expelissem um ar pesado que carregava toda minha preocupação acerca do trabalho ou de qualquer outra coisa que me impedia de fechar os olhos em paz.

Tudo estava indo bem até ela ingressar na equipe e ser uma completa descuidada, ignorando todas as regras de biossegurança.

Na verdade, eu não consigo entender até hoje o porquê ela seguiu esse ramo se seu talento sempre fora escrever.

Quando éramos crianças, Yoori me contava estórias que me deixavam perplexo, envolto pelo mundo da fantasia, encantado com o jogo de palavras que ela se utilizava, eu imergia em outra dimensão, na dimensão descrita por minha melhor amiga e eu sempre protestava quando ela me dizia que a estória não tinha um final.

Como que para calar meus pensamentos, a janela vizinha se abriu, revelando Yoori já vestia com seu típico moletom e camiseta de uma dessas corridas municipais anuais que ela sempre participava.

Ela se ajeitou na cama, ficando de frente pra mim.

"Oi". Ela disse, sem abrir a boca em nenhum momento.

"Oi". Respondi da mesma forma, e nós dois abrimos um sorriso, eu, um pouco mais envergonhado que ela. "Você me deixa louco". Fechei o cenho.

"Eu sei" Vangloriou-se, abrindo mais um de seus sorrisos radiantes e melódicos. "Os biscoitos estão incríveis" Ela maneou a cabeça para o andar de baixo da minha casa. "Come um".

"Não tô com fome" Dei de ombros, aproximando-me mais da janela, como se fosse possível diminuir o espaço entre nós.

"É ruim dormir de estômago vazio"

"As bactérias do meu intestino dão conta"

"Se cobre"

"Você vai dormir também?"

"Se cobre!"

"Tá" Faço como ela silenciosamente me pediu e a vizinha curva os lábios antes de descansar uma mão na janela.

"Por que não podemos conversar assim, Yoori?"

"Porque você me odeia"

Balanço minha cabeça, virando meu corpo para o lado oposto a janela.

Eu devo estar louco.

LabOnde histórias criam vida. Descubra agora