Capítulo 3

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Não sei por que acordei cedo naquela manhã. Já despertei com um maravilhoso torcicolo e uma baita dor nas costas, por ter dormido no sofá. Não sei como dois corpos, um enorme e um miúdo, conseguiram caber em um sofá tão mediano. Ambos estávamos em uma situação confortável-desconfortável, pelos seguintes motivos:

I. Confortável por estarmos em número par e os dois adorando aquela posição. Ele com os braços a minha volta, e eu me sentindo protegida e aquecida pelo calor do seu corpo.

II. Desconfortável pelo tamanho do sofá e a falta de travesseiros para apoiar a cabeça. Os pés dele ultrapassavam o outro encosto do sofá, enquanto os meus deixavam espaço de sobra. Pena que essa condição não anulou o desconforto que acumulou tensão sobre o meu pescoço.

O computador, a impressora e a iluminária que ficam sobre a escrivaninha foram deixados ligados por causa de tamanha distração naquela madrugada. A última coisa que eu pensava em fazer naquele momento era em sair dos braços de Victor para desliga-los.

— Bom dia, linda — ele disse ao acordar, passando a ponta dos dedos nos meus cabelos e colocando algumas mechas atrás da minha orelha. Não pude evitar um sorriso. Há tempos eu não me sentia daquela maneira, tão cuidada.

— Bom dia — eu respondi, me remexendo no sofá até conseguir ficar de frente para ele. Não sei como ele conseguia, mas o tempo todo em que eu o olhava ele sorria. Não tinha um momento, nem aqueles em que ele estava distraído, em que ele estivesse sério.

Ele levantou e me ofereceu a mão em seguida, me acompanhando em mais um café da manhã delicioso na mesma padaria que fomos da primeira vez. Dessa vez pareceu que tínhamos muito mais assuntos, muito mais coisas em comum. Parecia, incrivelmente, que nos conhecíamos há anos, que já tínhamos trocados muitos outros beijos antes e, de uma forma assustadora, parecia que éramos um casal. Eu não tinha mais onde enfiar a minha cara quando a garçonete perguntou “O que mais posso servir para o casal?”. Ok, talvez seja o jeito que nós nos olhamos ou a forma como estamos sempre conversando. Ou as caras amassadas de quem acabou de acordar.

Depois daquela segunda ida à padaria, esses encontros se tornaram frequentes até que chegou o dia em que ele me levou à sua casa. Tremi toda por ansiedade em vivenciar um recomeço, por me ver recuperada de um soco no estômago e estar seguindo em frente. Mas a ansiedade passou com o tempo e não demorou muito para que eu vivesse mais na casa dele do que na minha. Os meus atrasos com relação à faculdade aumentaram imensuravelmente, tendo como motivo principal a distância da casa dele. Era longe de tudo: existiam poucos comércios em volta, as casas predominavam e prédios eram muito raros. Acho que isso que mais me fascinava na casa dele. Era quieta, calma, tranquila. Era o tipo de casa que eu não tinha vontade de sair.

Eu cheguei a conhecer a sua irmã, num momento inoportuno, quando ele teve que me deixar em casa para leva-la ao hospital. Pelo menos era o que ele planejava. Eu, teimosa como sou, insisti para que eu fosse junto para ajuda-lo a lidar melhor com o ocorrido. Acontece que sua irmã, a baixinha Sophia, tem câncer no pulmão e sua condição tem pioras significativas. Sempre que isso acontece, Victor é quem se torna responsável por ela, uma vez que os seus pais não moram mais na cidade. Eu até entendia essa coisa de responsabilidade. Victor tinha pela irmã e eu tinha que ter por mim.

Nessa visita ao hospital, eu dialoguei com Sophia o mais cautelosamente o possível. Não queria assustá-la com papos como sofrimento ou morte, então, partindo de um tom de voz suave, eu me apresentei — inicialmente como amiga de Victor, mesmo achando que ela já desconfiava de algo a mais — e disse que sentia muito por ela ter que enfrentar tamanha dificuldade, mas que eu tinha fé que ela melhoraria.

Virei o meu rosto em seguida e pude notar Victor com o rosto em lágrimas, o que me deixou pasma — e ainda que ele estivesse lacrimejando, sorria. Ele era como um garoto frágil dentro de um corpo forte e um rosto sério. O tipo de cara que eu pensei que não existisse na face da Terra. Pegar a sua mão com força e beijar a sua bochecha foram apenas impulsos depois perceber que o que os meus olhos fitavam era real.

Sophia teria alta em alguns dias, ficando internada para uma avaliação posterior, então Victor teimou em me deixar em casa, porque ele voltaria para ficar com ela. O engraçado é que, no corredor do hospital, com aquele monte de pacientes enfermos, ele sorria. Um largo e encantador sorriso.

— Você não para de sorrir? — perguntei, sorrindo também.

— Sabe o que é... — ele falou, soltando um longo suspiro que o esvaziou o peito. — Minha irmã nunca gostou de nenhuma das minhas garotas. E ela gostou tanto de você.

Era motivo para sorrir? Porque eu quis chorar. Não o tipo de choro de decepção ou mágoa, mas um choro que eu não chorava há muito, muito tempo. Eu quis chorar porque ele deixou claro que me considera a sua garota. Eu quis chorar porque pela primeira vez, eu me senti inteira. Eu quis chorar porque aquele bendito sorriso branquinho me dava a esperança de uma longa felicidade por vir. Eu quis chorar porque um choro de felicidade era tudo o que me faltava, e ele conseguia me proporcionar isso em questão de segundos, com uma simples frase.

Victor não era um garoto fácil. Na verdade, eu nunca acreditei que garotos fáceis existissem. Ele era uma bagunça, principalmente na sua cabeça. Tinha planos impossíveis, sonhos que pareciam inalcançáveis. Eu sabia que, por debaixo daquele sorriso gigantesco e atrativo, existia um garoto com mágoas e dores que todo mundo um dia tem. Mas era exatamente o conjunto da obra que me deixava tão emotiva. O meu coração, que já apanhou tanto nessa vida, batia contente e calmo. Devia estar tão feliz quanto eu, ao pensar que finalmente conheceria sentimentos que não sabia da existência.

Uma volta do hospital nunca pareceu tão divertida. Eu mal conseguia conter a minha felicidade no banco do passageiro, exibindo algumas das minhas danças loucas no ritmo da música que tocava no rádio.

“It might not be the right time

I might not be the right one

But there's something about us I want to say

‘Cause there's something between us anyway”

Pra ser sincera, o meu interior não queria gostar de Victor. Dizia que eu não estava pronta para assumir outro risco que é gostar de alguém tão depressa. Dizia que eu ainda tinha esperanças de voltar para Ian — argumento até válido, considerando o mico que paguei na festa de Lia. Dizia mil e uma coisas negativas, mas o meu coração... Ah, o meu coração. Apenas o ritmo que ele batia já era suficiente para provar que viver essa nova experiência com Victor era tudo o que eu precisava para me sentir completa.

É claro que todo esforço que eu tinha feito era pouco: como dependentes físicos precisavam de reabilitação, eu precisava de Victor Depolo.

Meu gosto pelos teus defeitosOnde histórias criam vida. Descubra agora