JOANA

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O alarme despertou às 4h 30min iluminando o breu do quarto e inundando o silêncio reconfortante com uma melodia metálica. O corpo pesava como chumbo na cama acolhedora e Joana não quis abrir os olhos. Não era para prolongar o sonho bom, já que com o som emitido pelo celular rompeu bruscamente com qualquer possibilidade de se lembrar das imagens que haviam sido projetadas por sua mente sonolenta, se é que, de fato, sonhara algo. A verdade é que há muito não sonhava, nem mesmo acordada. A rotina não lhe permitia mais esse privilégio. Ficou imóvel como se isso impedisse os minutos de fluírem. Só que a música que fazia com que ela despertasse todos os dias, não parava de tocar. Abriu os olhos. Não por vontade, mas por dever. Dever de acordar e cumprir com suas obrigações. Era quinta-feira. Sábado, se daria ao luxo de dormir até às sete. Tomou um banho quente depois de criar coragem para despir-se num banheiro gelado. A sensação térmica devia ser de doze graus. Pensou que isso era considerado tempo bom no sul do país. Não teve o menor desejo de descer no mapa. Não demorou no banho. Era preciso economizar tanto água e eletricidade como tempo. Depois de se vestir com uma das poucas opções outono-inverno existentes em seu guarda-roupa, dirigiu-se à cozinha. Fez o café, que tomou comendo algumas torradas com uma camada fina de margarina, e a mamadeira do filho. O menino de dois anos ainda prometia muito investimento em leite. Amamentou o quanto pôde, num gesto que entrelaçava amor e um não se preocupar com reservar dinheiro para esse fim que, Jô, como era chamada pelos mais chegados, nem pensaria em racionar. Deixava de comprar coisas para ela de modo que a Lucas, nada faltasse. O que, de certo, não passou pela cabeça de Reinaldo quando pediu a ela um teste de DNA e sumiu antes mesmo que o resultado se confirmasse. Odiou-se por chamá-lo de Rei, cega que era por uma paixão, que hoje, classificava de besta. Enquanto o filhote mamava ainda dormindo, escovou dente encarando no pequeno espelho um rosto magro de olhos fundos e levemente arroxeados. Quis chorar, mas se atrasaria e perderia o ônibus se o fizesse. Engoliu a secura de sua vida. Ao invés de reclamar, pensou que estava em situação melhor que a de muitas outras mulheres. Pegou a marmita já preparada na noite anterior e colocou na mochila. Trocou o pijaminha pelo uniforme da creche municipal, ajeitou a mochila nas costas e o filho ainda adormecido num braço, equilibrou sua mochilinha com roupas extras no outro e saiu para mais uma batalha diária.

Desceu a ladeira mal asfaltada desviando-se dos trechos mais tortuosos com a habilidade de quem já faz isso no modo automático. O dia escuro como a noite. Nem o sol havia acordado e as luzes dos poucos postes ainda permaneciam acesas. Chegou no horário costumeiro, o ônibus passaria em cinco minutos. Não sentou porque não havia onde se sentar, mas já se habituara a ficar de pé, naquela situação, por cinco minutos. No ônibus, sempre conseguia um banco para aliviar a tensão dos músculos que, depois que virara mãe, passara a malhar mesmo não frequentando academia alguma. O coletivo passaria. Passaria. Mas não passou. O filho não era um peso para ela, mas pesava em seu colo de mãe que tudo suporta. Passaria. Mas não passou. Notou, então, que o ponto estava menos cheio. Que algumas caras conhecidas não estavam ali. Elas também deveriam passar por ali naquela hora. Mas não passaram. Antenou os ouvidos com a inquietude de quem perdeu parte preciosa de uma história, que no caso, era a dela mesma. Um burburinho começou. Ouviu um comentário solto sobre caminhoneiros que deveriam passar, mas também não estavam passando. Caiu em si de que com a correria dos dias, não tinha visto as últimas notícias. "É greve sim." Alguém pontuou. Dez minutos se passaram e nada do ônibus chegar. Passou Lucas para o outro braço. Mudou o peso para a outra perna. Alguém anunciou: "Não vai passar". Mas a esperança se mantinha. "Reduziram o número de veículos. Algo a ver com economia de combustível". Demoraria, mas passaria, então. Não havia o que fazer, a não ser esperar. Esperaram. Mais quinze minutos e nada. Sentiu um formigamento. O braço ameaçando fraquejar, porém ela resistia. Todos ali, à sua maneira, resistiam. As ruas vazias de calor, pessoas e automóveis resistiam. Até quem nem tinha saído de casa resistia. Joana já estava, há vinte minutos, resistindo, com o filho resistindo em acordar, as mochilas resistindo em ficarem leves, no frio daquela manhã de resistências. O ônibus passaria, mas não passou.

Sempre resistindo, Joana subiu a ladeira. 

MEU PRIMEIRO MANIFESTO FEMINISTAOnde histórias criam vida. Descubra agora