I'LL DO MY CRYING IN THE RAIN

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O apartamento, antes tão pequeno, agora parece não ter fim devido às memórias que o invadem. Meu olhar está fixo na televisão desligada pendurada na parede do quarto. Sinto o cheiro da pipoca que fizemos, naquele dia, para assistir ao primeiro filme juntos no nosso cantinho. Não tenho ânimo para ligá-la. Ouço mais uma notificação vinda do celular que está na mesinha de cabeceira ao lado do teu sorriso no porta-retrato que já era pra ter sido retirado dali. Não param de chegar mensagens no whatsapp, mas não quero lê-las. Sei que não são tuas. Só não está mais silencioso, por causa da minha consciência que não se cala e porque o barulho da chuva, que não para, insiste em cair no vidro embaçado da janela. Sei que romper foi a atitude correta, mas estar separado traria mais alívio caso o sentimento também se reduzisse ao tamanho da confiança restante.

Era sábado, o último do mês de outubro. O dia amanheceu lindo, mesmo estando cinzento, afinal era o nosso dia. Ainda me questiono se era feliz de verdade desconhecendo os fatos. E concluo que se meu relógio estivesse atrasado cinco minutos e alguns sinais vermelhos tornassem mais demorado meu trajeto pela Avenida Independência, ainda viveria a benção de minha ignorância. Prometo a mim mesmo que não vou mais lembrar-me do teu gosto na minha língua e da maciez de suas mãos em minha nuca, nem do vermelho do teu esmalte fincando em minhas costas suadas. Percebo o paradoxo de me querer morto para ti, mesmo que vivas em mim.

O apartamento me sufoca. Saio. Desço, com pernas fracas, as escadas empoeiradas que já ouviram tantos fragmentos de conversas nossas. Queria não ter que retornar para a frieza do seu, agora, não-lar. Banhado pela água que cai de um céu de não-luar, eu sigo, porque é isso que se deve fazer. Cego para as pessoas e carros, surdo para as buzinas e anúncios, vou sem destino. Prédios altos gritam o tempo todo o quanto sou pequeno, porém um avião que me faz estremecer, recorda-me de que mesmo o menor dos pássaros é capaz de voar. Choro.

Chorar na chuva é uma forma de esconder de si mesmo a dor que preferias que não pulsasse mais dentro de ti. É saber que a intensidade do sentimento é tão forte quanto o orgulho de admitir que o relacionamento não existe mais, que o para sempre acabou. A garganta queima e continua arranhando a saliva que, mesmo seca, insiste em descer. A vida é o que, senão esse ciclo ininterrupto? Outra vez é verão e agradeço por ser uma estação chuvosa. Deixo que as gotas frias enxuguem minhas lágrimas quentes enquanto os raios me energizam e resgatam a eletricidade da paixão que vivi. Sei que é egoísmo meu, mas não quero saber de notícias felizes. Ao menos não enquanto minha sobrevivência vier da degustação das lembranças do tempo em que éramos nós. Quando caminhávamos, de mãos dadas, por esta mesma avenida em um dia de sol. Sei que a deprê vai passar e um novo motivo para seguir irá surgir, mas preciso enfrentar essa despedida e viver esse luto que, talvez, fosse menos complicado de aceitar, se estivesses, de fato, morta, já que matá-la em meu coração faz de mim o frio assassino que não almejo ser.

Quando o outono trouxer os dias alaranjados, eu saberei que os ventos que levam as folhas também terão levado as tardes cinzentas e tempestuosas e talvez os raios de sol cheguem até você como uma memória boa. E pode acontecer de, nesse dia, nos esbarrarmos e, o sorriso no meu rosto será apenas um disfarce da dor que tu nunca saberás que ainda me consome.

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PS: Leia ouvindo Crying in the rain - A-HA.

MEU PRIMEIRO MANIFESTO FEMINISTAOnde histórias criam vida. Descubra agora