A DECISÃO

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"Moça, olha só o que eu te escrevi. É preciso força pra sonhar e perceber que a estrada vai além do que se vê." (Los Hermanos)

Maria retirou do guarda-roupa, dobrou cuidadosamente e colocou na mala sobre a cama, as últimas peças que desejava levar consigo para a nova vida. Decidir, tinha lhe tomado longos sete meses. A dúvida em forma de "e se" havia lhe atormentado e, por inúmeras noites, tirado seu sono. Agora estava aliviada. O coração batia com a certeza da escolha certa. Não se despediu do apartamento vazio de móveis e de vida. Trancou a porta e, pela primeira vez em quatro anos morando ali, não apertou o botão para chamar o elevador: desceu pela escada. Acenou para o porteiro com um sorriso sincero e se foi sem olhar para trás.

No taxi, que a levava rumo ao Tom Jobim, a música na rádio mal sintonizada, que sempre fazia com que ela chorasse, adquiria um novo significado. Respirou a maresia e, estava aí algo de que sentiria falta. O mar era uma paixão que valia a pena. Tinha sido amor à primeira vista e duraria para sempre. Já havia se esquecido de como era uma mulher intensa. Desse dia em diante, não toleraria mais ser apenas casa, comida, roupa lavada, sexo fácil e seguro para seu ex, nem para nenhum outro homem. Acostumou-se com a projeção que criara dele e mentia para si mesma, que à sua maneira, Henrique a amava. Demorou a enxergar que o sentimento era unilateral. E quando abriu os olhos, faltou coragem para tomar uma atitude. A insegurança dominou a sua solidão a dois. O medo idiota de ficar sozinha corroía sua alma. Empurrou com a barriga até que, um e-mail que já nem esperava mais devolveu-lhe a vontade de viver. A mensagem recordava-lhe de um sonho tão antigo que parecia ter sido sonhado em outra vida. PARABÉNS! VOCÊ AGORA FAZ PARTE DA NOSSA EQUIPE DE PUBLICITÁRIOS! Dizia um trecho em negrito no meio da tela do computador. Maria tinha quinze dias para dar uma resposta à empresa, mas não levou nem 24 horas para despachar o ingrato, com seus pertences e seu egoísmo para a casa dele. Retornando de seu devaneio, notou que outra música havia começado. Deixou-se embalar pela voz que cantava "...essa é a solução de quem não quer perder aquilo que já tem e fecha a mão pro que há de vir" e nem se importou com o engarrafamento quilométrico que tiraria de seu bolso algumas notas de dez a mais. Estava orgulhosa de si mesma por perceber que aquela letra não se encaixava mais em sua trajetória. Pagou o taxista e sentiu-se feliz por, naquele momento, estar no aeroporto, diante do avião que a levaria para São Paulo. Verificou os horários dos voos, comprou a passagem só de ida, fez check in e torceu para que não ficasse entediada de ter que esperar por uma hora e meia até poder embarcar, pois desejava que nada estragasse seu dia perfeito. Passou por várias lanchonetes. Optou pela mais cheia. Gostou de estar rodeada por pessoas diferentes, que de certo, tinham histórias mais interessantes que a dela para contar.

- Está esperando alguém?

- Não.

Foi só o que Maria conseguiu responder enquanto admirava o rapaz que não perdia a postura nem procurando um espaço onde pudesse colocar a bandeja.

- Importa-se - abrindo um sorriso tímido - de me sentar contigo?

- Imagina!

Por que ela, que disparava uma palavra atrás da outra, ficara monossilábica de repente? Observou-o ajeitar a mala antes de começar a comer. Era pequena como a sua. Também viajaria para algum lugar perto ou carregava só o essencial para recomeçar?

- Fugindo da correria - perguntou a meia boca da próxima mordida - ou correndo pra ela?

- Espero que um pouco de cada. - Bebeu um gole do refrigerante. - Se é que isso é possível.

- Se é o que deseja, - encarou-a com serenidade - então será.

Um tanto quanto encabulada, sentiu o rosto corar com a profundidade do olhar daquele estranho. Aquela frase, simples para ele, incomodou-a por atingir direto suas feridas ainda em processo de cicatrização. Passara anos focando no que não queria e se esquecera do que queria. Fizera a mala no impulso e, se questionou, naquele instante, se seus desejos eram, de fato, seus. Ela gostava de tomar café pela manhã, ou era hábito adquirido de Henrique? Será que ela preferiria o chá, que nunca tomou porque o ex detestava? Olhou para o que vestia. Aquele estilo a definia? E os livros e filmes que acumulara na estante? O que ela desejava? Teve urgência em descobrir. Urgência em se redescobrir. Mexeu no canudo misturando a bebida sem a menor necessidade e teve um ataque de consciência. Por que estava dando tanta brecha para alguém que acabara de conhecer? Finalizou deixando escapar um ruído baixo no fundo do copo. Riu de si mesma e pediu licença. Havia lido algumas reportagens sobre tráfico de pessoas que sempre a deixava paranoica e pensou que o mais prudente seria se afastar dele antes mesmo de saberem o nome um do outro e seus destinos. Dirigiu-se à livraria tentando abstrair-se daquela situação, porém não conseguiu tirar o bonitão, que ela nunca mais veria, da cabeça. Entre um título e outro, constatou que compraria alguns só por ter gostado da capa, já que se concentrar na leitura das sinopses estava impossível. Desistira na quarta tentativa de ler a mesma. Abdicou dos romances longos, fantasia juvenil nunca fora uma opção, terror em hipótese alguma. Bastava o horror que já tinha vivido nos últimos anos. Avistou um de Crônicas, escrito por uma mulher, no cantinho superior da prateleira, no fundo da loja. A chance de se identificar com as ideias da autora era enorme. Comprou para ler durante a viagem.

Foi ao banheiro. Escovou os dentes e o cabelo. Retocou o delineador que realçava seus olhos e o batom. Ouviu anunciar a primeira chamada para o seu voo. Caminhou devagar, entregou a passagem para a comissária de bordo e ajeitou-se, porém, antes que pudesse iniciar sua leitura, um leve arrepio percorreu-lhe a espinha e o coração disparou ao dar-se conta de que começaria tudo do zero. Sentiu medo, mas um medo bom que ronda o desconhecido. O que o destino estaria lhe reservando, só o tempo revelaria. Tinha apenas uma certeza: eram muitas as possibilidades.

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Conto publicado na antologia Um céu e estrelas pela Editora Villa-Lobos. 

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MEU PRIMEIRO MANIFESTO FEMINISTAOnde histórias criam vida. Descubra agora