AINDA QUEREM NOS CALAR

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Julia nasceu livre. Livre com muitas aspas, já que ninguém nasce livre. Todos são escravos de um sistema cultural e ideológico pelo qual vão crescer lutando a favor ou contra. A verdade é que ela nasceu em 80 e ainda era ditadura em seu país, mas foi criança de oito anos protegida pela Constituição de 88 e adolescente que podia se expressar sem medo de ser presa pelo DOPS. Então podia se considerar que Julia nasceu livre. Mas ela era mulher e vira e mexe era empurrada de volta a um século XIX onde mulheres direitas não diziam o que pensavam. Mulher não deve falar sobre política, pois isso causa inimizades entre seus familiares. Mas Julia é cria de uma família onde os homens sempre discutem política, não importando se a reunião foi para comemorar o nascimento do bebê, seu batizado ou as festinhas de aniversário. Só que ela foi convidada a conversar apenas sobre tarefas domésticas, filhos, literatura (leia-se romances) e música. Assuntos leves que não causam inimizades. Mas eles se esqueceram de que Julia nasceu livre. Agora sem aspas.

Julia não lê só romance, ela ama distopias e Hemingway e Bauman, aquele mesmo da Modernidade Líquida. Sem falar da paixão pelos portugueses Fernando Pessoa (que era um fingidor como Julia não sabia ser) e Saramago que retirou-a de sua cegueira. Julia não era filiada a nenhum partido político, porém isso não fazia dela uma mulher apartidária. Não sabia falar de literatura sem ser política ou seria politizada? Não conseguiria falar de música sem citar que Anita foi aplaudida de pé em Harvard ou sem citar as hashtags do Chico (Buarque) que assim como Julia não é apolítico, mas Chico é homem. Então vamos falar dos namoradinhos, Julia? Só que ela não faz parte da feliz e perfeitinha família comercial de margarina. Ela não tem namoradinhos. Ela entendeu que não precisa estar ligada a um ser do sexo masculino e reproduzir os pensamentos dele que não são os dela para ser respeitada. Júlia não sabe falar de namoradinhos sem ser feminista. E os filhos? Melhor também não mencionar. Ela vai acabar falando da creche (pública) e isso vai descambar em um ato político e ela foi convidada a não causar inimizades entre seus entes queridos falando sobre esses assuntos.

Só que apesar de Julia arranhar alguma coisa no piano, os pianos da família, agora, só ficam fechados durante as festas e ela não sabe cozinhar pra trocar alguma receita e nem bordar pra falar do novo ponto que aprendeu no YouTube. Ela não vê novela e não assiste BBB. Ela assiste séries da Netflix, mas isso é melhor não comentar. Vai ser filosófico ao extremo.

Júlia é uma mulher do século XXI que não gostou de Orgulho e Preconceito da Jane Austen, apesar de se identificar em tudo que envolvia Elizabeth e Darcy. Deve ter sido a leitura arrastada demais pro mundo moderno acelerado que Bauman definia como líquido ainda no início dos anos 90 quando Julia se politizava com Cazuza, Legião Urbana, Titãs e Guns and Roses e ainda não tinha lido nada da Clarice (a Lispector que atualmente não sai de sua mesa de cabeceira). Diziam as más (ou boas) línguas que ser roqueiro era uma questão de atitude. Atitude que, hoje em dia, tem sido tolhida pela obediência em nome da moral e dos bons costumes.

Então Julia chorou. Chorou sim porque doeu. Uma dor de quem quer calar quem ela é, pois pedir pra que ela não converse sobre política corresponde a pedir que ela anule seu voto nas eleições mais definidoras de sua época depois da abertura política de 85. Pedir que Julia não fale sobre política é pedir pra que ela se anule, não se empodere, não seja humana. 


MEU PRIMEIRO MANIFESTO FEMINISTAOnde histórias criam vida. Descubra agora