SIGA AS BORBOLETAS

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Khyra se desesperou ao notar que faltavam dez minutos para acabar o tempo da prova de História e ainda restavam três questões discursivas para serem respondidas. Odiava aquela matéria apesar do apreço que sentia pelo professor. Ficaria em recuperação de novo. Da última vez, a mãe tinha restringido o uso do celular, cancelando seu plano de internet, que nem era um dos melhores, mas ainda era algo mais que ficar isolada do mundo por um mês. Sua vida estava ali, mas dona Cibele não entenderia e acharia exagerado tamanho apego ao tal aparelho. Tentava se concentrar, mas estava impossível com o barulho irritante que a insuportável da garota que sentava paralelo a ela na fileira da direita não parava de fazer ao se balançar naquela cadeira de madeira antiga que já era pra ter virado peça de museu há muito tempo. Era difícil saber o que a incomodava mais: o barulho estridente ou a pessoa que o fazia. Para piorar a situação, tinha se esquecido de colocar o Buscopan na mochila e a cólica não permitia que o cérebro funcionasse normalmente, favorecendo aquele horroroso branco. Olhou para o céu e fez uma prece. Só um milagre a salvaria. Foi então que um círculo de fogo se formou naquela imensidão azul cinzenta. Sim, o dia estava feio e com jeito de que ia chover, porém isso não importava mais, aquelas questões em branco também não. Sorriu, levantou-se com tranquilidade e entregou a avaliação agradecendo mentalmente por deixar aquela sala de aula quente, culpa de um ar condicionado inexistente e de um ventilador quebrado por dois dos próprios alunos da turma. A partir de agora, nada daquilo importaria mais. A história dela, dali em diante, seria outra. Havia visto o símbolo no céu. Isso significava que tinha sido a escolhida para a missão de outono.

Com o intuito de atrasar a provável reação que a mãe teria, foi a pé para casa, sentindo a chuva fina gelar seus braços, consequência de se negar a carregar casaco e sombrinha. Amava sua mãe mais que tudo na vida, mas reconhecia que ela era exagerada e, por mais que fosse só alguns dias daquele outono, a mãe faria drama como se as duas fossem ficar distantes uma da outra por um ano, mesmo sabendo que Khyra havia sido agraciada com o sinal no céu que a transformaria de uma bela menina em uma graciosa mulher. Bem, isso era o que se diziam a respeito das missões e ela nunca soube direito se essa beleza era física ou interior, só o que sabia era que ansiava por fazer, ela mesma, essa descoberta.

A adolescente que sempre tentava aparentar mais maturidade do que, de fato, seus dezessete anos lhe permitiam ter, parou na frente de casa, aquela mesma em que havia passado toda a infância se apegando cada vez mais à mãe como forma de suprir a ausência do pai. A vida inteira passou como um flash nos olhos de sua alma. Suspirou fundo e, sabendo que não haveria como adiar mais aquele momento, abriu a porta da sala iluminada apenas por um abajur de luz amarelada e encontrou a mãe sentada em sua poltrona preferida com um semblante que mesclava saudade antecipada e orgulho. Precisava ter duas vidas para absorver aquela cena, mas a verdade é que não tinha vivido ainda, nem a metade de uma. Ajoelhou-se apoiando a cabeça nas pernas de dona Cibele e penetrou, com lágrimas a banharem-na a face, o olhar reticente daquela mulher a qual ela desejava ser espelho e refletir força e sabedoria:

— A benção, mãe!

Queria ter demonstrado coragem, mas mesmo que quisesse, não teria conseguido fingir, naquele momento, que não era o medo que a rondava. Medo este que vinha atrelado à responsabilidade de cumprir sua missão e honrar a mãe e a quem havia lhe destinado para esta incumbência. Desde criança desejou que este momento chegasse logo, porém agora que ele a encarava ficou sem saber direito como agir. A mãe, parecendo adivinhar, deixou a si mesma de lado um pouquinho, pegou nas mãos da filha e com um sorriso tênue, aconselhou:

— Não me é permitido dizer muito agora, portanto digo-te o essencial: Siga as borboletas! Tudo o mais se resolverá se te lembrares disso.

— Não me esquecerei.

MEU PRIMEIRO MANIFESTO FEMINISTAOnde histórias criam vida. Descubra agora