PLATAFORMA 90

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"O inferno é a eterna repetição."

(Stephen King)

Jack acordou assustado. Depois de olhar de um lado para o outro e reconhecer a decoração de sua sala, respirou aliviado e pegou o celular para conferir a hora. O visor marcava 5:00 em letras grandes e em negrito no meio da tela. Olhou para a televisão ligada e constatou, pelo programa que estava passando, que ainda era de tarde. Outra vez tinha cochilado assistindo TV e tivera um sonho, que sabia ser medonho, porque havia acordado com o coração acelerado e com uma sensação muito ruim. De novo, deslizou o dedo pelo aparelho e se levantou, de um pulo, quando leu 31 de Outubro de 2015. Tinha combinado de encontrar os amigos às 6h para o tradicional "travessuras ou gostosuras?". Era a tão esperada noite de Halloween. Ele tinha doze anos, mas quando se tratava de pedir doces, todos viravam crianças. Correu para o banho, pois já estava atrasado. Colocar a fantasia seria rápido, mas fazer uma maquiagem macabra decente, na certa, levaria algum tempo.

- Jack, quantas vezes vou ter que pedir para desligar a televisão quando não estiver mais vendo?

Sabia que era uma bronca, contudo não conseguiu impedir que um sorriso lhe saltasse ao rosto. Soltou um "yes" socando o ar com a mão direita, deixando respingar água quente no chão frio do banheiro - o box deveria ter chegado há dois dias, e a cortina rasgada não impedia que uma poça se formasse ao fim do banho - conseguia imaginar a mãe cantarolando sua música preferida ao volante, por ter conseguido bater a meta diária e sair mais cedo do serviço. Desse modo, ia poder lhe ajudar a se transformar num verdadeiro zumbi. Claire, sim, entendia dessas coisas de pintura.

E foi desse modo que, como num milagre de Halloween, na hora combinada ele já estava pronto para se unir às caveiras, fantasmas, bruxas e outros monstros que passavam, naquele momento, em sua calçada. Na correria para se juntar ao grupo, só se lembrava de ter ouvido, ao longe, ela gritando para que tivesse cuidado. Uma campainha tocada após outra e a cesta, em forma de abóbora, ficava cada vez mais pesada, e é claro que o menino não aguentaria esperar chegar em casa para devorar as guloseimas. Distraiu-se procurando um chiclete de asa de morcego, que por ter sido um dos primeros que ganhou, com certeza estava por baixo dos outros. Foi então que percebeu que tudo estava silencioso. Havia virado para o lado oposto e se afastado de todo mundo. O primeiro ímpeto foi de dar meia volta e correr ao encontro deles, já que não deviam estar longe dali, porém uma casa abandonada na esquina seguinte atraiu sua atenção. Não podia ser. Esfregou os olhos para confirmar que não estava tendo uma alucinação. Sentiu um frio percorrer-lhe a espinha. Aquele era o lugar em que estivera, poucas horas antes, em seu pesadelo. Jack crescera ali e conhecia o bairro como a palma de sua mão. Observou, com olhos espantados, todas as residências e não reconheceu nenhuma. Aquela rua sinistra não fazia parte do Brooklyn. Sua consciência dizia que deveria sair dali imediatamente, só que as pernas pareciam se mover sozinhas para o enferrujado portão daquela casa horripilante. Com as mãos trêmulas, puxou o trinco e entrou. Subiu, devagar, os três degraus que conduziam à varanda da sala, onde a porta de madeira descascada e coberta de teias de aranha que deviam lhe amedrontar, afinal, tinha pânico desses aracnídeos asquerosos, pelo contrário, induzia-o a seguir em frente. Travou os dentes com o ranger fino e irritante das dobradiças e imergiu no breu total. Passou a mão pela parede em busca de um interruptor, que não funcionou. Sentiu raiva de sua estupidez. Se estava abandonada, era óbvio que o serviço de energia elétrica tinha sido cancelado ou cortado. Esperou que sua vista se acostumasse com a escuridão. Na penumbra, distiguiu alguns panos brancos que cobriam os poucos móveis esquecidos ali e uma luz amarelada nos vãos da porta do que deveria ser um dos quartos. Só se ouvia, naquele instante, o ruído da tábua corrida podre e o som ofegante de sua respiração, enquanto se aproximava do único cômodo iluminado. Só dormia de luz acesa e já nem se importava mais com as gozações de seu irmão mais velho, portanto não sabia explicar de onde vinha toda aquela coragem repentina. Contou mentalmente até três e chutou a porta que estava entreaberta. O amarelo ficou tão intenso que precisou fechar os olhos num ato reflexo de proteção para não cegar. Uma força sugou seu corpo como se fosse um ímã e ele não pôde mais conter o grito preso na garganta. Quando uma lufada de ar gélido, fez os pelos de seus braços se arrepiarem, relutou em abrir os olhos, no entanto permanecer com eles fechados era ainda mais agoniante. Abriu e se deu conta de que tinha sido transportado para uma estação ferroviária. Nada de casas abandonadas, nem ruas silenciosas e, muito menos gostosuras. Ficaria de castigo pelo resto do ano, por tal travessura. Devia ter ouvido sua mãe e tido cuidado. Para ambos os lados que olhava só trilhos infinitos. Agora era tarde demais. Teria que tomar o trem e torcer para que o caminho de volta para o Brooklyn estivesse na próxima estação.

MEU PRIMEIRO MANIFESTO FEMINISTAOnde histórias criam vida. Descubra agora