Validando-se pelo sentido cíclico do período de um dia, eu definitivamente concordo com você, caro leitor, que as coisas aqui andam um pouco rápidas demais. A obscuridade na qual os eventos aqui ocorrem é intrigante, não? Tentarei esclarecê-los melhor neste capítulo, a fim de que toda essa corrosão interna por mais informações livre você desse sentimento. Contudo, sincronicamente alimentando-o.
A morte de John havia nos estagnado por semanas, e mesmo com a aparição de Charles em nosso prédio e toda aquela crise passional, eu me vi impossibilitada de esquecer toda aquela tragédia. Todavia, tivemos de seguir em frente.
Era segunda-feira, e a escola havia nos mandado um comunicado via correio dizendo que o prazo do atestado de óbito já havia passado da validade. Não tive outra escolha a não ser levar Mel à escola. Anastácia, a nossa empregada, nos acompanhou durante todo o percurso. Era negra, dona de olhos que exalavam profundamente todo o sofrimento que a mesma havia tido em sua vida, mas que ao mesmo tempo serviam de cortina para seu passado, este sequer mencionado pela labutadora. Era de certo um tanto graúda, característica na qual se deve tomar como a mais marcante da auxiliar, já que por isso ela tinha muitos problemas respiratórios. Nós a chamávamos de Aná, isso porque ela lia histórias para Mel quando ela ainda tinha 3 anos, e por não conseguir articular todas as sílabas corretamente, foi apelidada assim.
- Madame, sem querer lhe incomodar, mas é que eu gostaria de perguntar a você se a senhora poderia adiantar o meu salário desse mês... É que eu estou precisando comprar aqueles remédios para respirar melhor, sabe?
- Tudo bem Aná, fique tranquila.
Eu era boa com ela, ou pelo menos tentava. Por diversas vezes me peguei questionando se eu era uma boa chefe, mas sempre chacoalhava a cabeça num gesto contestatório, negando algumas evidências racistas.
Deixei Mel na escola, voltamos para casa. O porteiro não havia me avisado, mas me deixaram um bilhete na porta de casa com a seguinte inscrição:''Se à luz do meio dia o relógio urrar, atentos ao vento os pássaros devem estar, fazendo suas asas incompreensíveis (liturgicamente falando) lutarem, contra um homólogo império de átomos em estado gasoso virarem a apropriação inconsequente de um modelo ontem ridiculamente reservado e rasgado do ponto de vista moral e científico, homologando-os juntamente com a esclerometria esquizofrênica.
1 9 10 17 20 26 29 33 34 36 39 40 41 42 43 44 52 53 54 56''
Como de costume, paralisei. Primeiro achei que era alguma brincadeira de mau gosto, mas aqueles números me assustaram. Os algarismos ''9'' e ''10'' eram exatamente os mesmos que o relógio marcava. Seria tudo isso coincidência?
Foi então que, de súbito, Charles chegou. Se encontrava desesperado e suando como um porco. Seu rosto estava branco, e suas mãos estavam tão trêmulas quanto as barulhentas e agitadas britadeiras das construções do bairro.
- Meu Deus, o que aconteceu com você? – interrogativamente exclamei.
- Acabaram de me roubar, levaram tudo. Eu não consegui reagir.
- E não deveria! Pense pelo lado bom, pelo menos eles não machucaram você.
- É verdade. Mas você sabe como são esses bandidos de hoje, eles têm mais medo de nós do que nós deles.
- Mesmo assim, você fez bem em não reagir. Descanse um pouco, eu vou buscar um copo d'água para você.
Estranhei. Os casos de roubo ali no bairro eram absurdamente raros, e naquele ano ainda não havia acontecido nenhum. Além disso, o que é que ele estava fazendo ali? Com aquela roupa anormal, inteiramente suja de óleo como se ele tivesse entrado em um lugar asqueroso. Não perguntei. Fiz da minha confiança nele a primazia regra do meu coração.
Quando voltei para a sala, peguei-o lendo a carta que eu tinha acabado de receber. Ele já não parecia mais tão ruim, e seu rosto transfigurava-se em caras e bocas misteriosas de maneira incessante.
- E por acaso eu deixei você mexer nas minhas coisas? – sarcasticamente o questionei.
- Me perdoe, é que eu não pude evitar olhar para esses números no final, eles me intrigaram bastante.
- Eu fui provavelmente alvo de chacota das crianças do prédio, não deve ser nada...
- Na verdade, eu acho que eles têm muito significado, olhe.
E então, como numa genuína personificação de Sherlock Holmes, Charles conseguiu encaixar os números em uma certa sequência lógica narrativa.
- Sabe, eu brincava muito disso quando era criança. Quando eu gostava de uma menina, escrevia uma carta enorme cheia palavras desconexas, e logo em baixo eu assinava com a quantidade de números que estavam associados à ordem de palavras no texto. Acho que isso pode ter sido construído da mesma forma...
Fizemos, e ao juntar as palavras respectivas aos números, formamos:'Se urrar, atentos, fazendo incompreensíveis liturgicamente homólogo átomos virarem a inconsequente modelo ontem ridiculamente reservado e rasgado homologando os juntamente esclerometria'
Não fazia sentido. Porém, como num surto de esperteza, ele começou a colocar as palavras em uma coluna única, selecionando a primeira letra de cada termo, nos revelando então algo extremamente assustador.
''S U A F I L H A V A I M O R R E R H O J E''
Soltei a folha da mão, e no mesmo segundo apaguei. O que seria de Mel agora? Era uma brincadeira de mau gosto? Como é que todas as coisas se encaixaram perfeitamente quando Charles chegou em casa?
Perguntas, perguntas e mais perguntas. Tempo é conhecimento, e era só questão disso para que eu percebesse que as coisas na minha cabeça não eram tão simples quanto eu imaginava. Esse surto de complexidade tomou conta de mim por completo, levando-me a questionar a existência da minha própria capacidade de ser Humana. Eu figurativa, emocional e espiritualmente tinha chegado ao colapso.
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Concupiscência Programada
RomanceJane Smith é a mulher mais indigente do mundo: tudo o que ela possui são ações de corporações multinacionais, carros de luxo, imóveis incontáveis em diversos países e é simplesmente a 8ª mulher mais poderosa e influente do mundo. Mas apesar de possu...