Carceragem.

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Acordei num lugar catinguento, cheio de goteiras e com pouca luz (era o que dava para perceber diante do saco de batatas que encobria a minha cabeça). O cheiro era de peixe, e ao fundo eu ouvia um suave barulho de tráfego de navios.
– Um porto! – exclamei.
E então, alguém tirou o saco de minha cabeça. Eu me encontrava zonza, e como de costume, completamente desolada. Havia três homens, assim, logo relacionei que eles seriam os mesmos descritos pelo diretor quando estávamos na escola. Eles estavam de máscara preta, usavam roupas pretas e seus rostos exalavam braveza, temor e medo; já em seus olhos, via-se que eram tão profundamente melancólicos que nestes quase não se via a própria cor da íris, resguardando-a e revestindo-a com a cor da própria tristeza que se arraigava em seus corações.
- Pois então você já sabe quem pegou a sua filha, não?
– Toca o telefone –
- Não, chefinho, ela está em perfeitas condições, e a filha dela já está no lugar combinado.
- Desgraçados! Vocês vão pagar caro por isso!! – e, pensando alto, prossegui – e o Charles virá me salvar, eu sei que vai!
- Hahaha! Ninguém caminha por aqui, estamos completamente isolados de qualquer contato humano; agora vamos ao resgate: para que você e sua filha saiam sãs e salvas daqui você terá que pagar.
- Quanto você quer? Eu tenho muito dinheiro no banco, posso dar o que você pedir, só deixe a minha filha em paz!
- Oh não, nós não queremos o seu dinheiro... Sabemos que você já descobriu tudo, inclusive sabemos que sua filha teve contato com ele mais cedo na escola. Agora, para você, o que há de mais valioso é a sua empresa. Então, se você não nos contar a verdade, nós tomaremos medidas drásticas, conhecemos o seu ponto fraco, e seu marido é também apaixonado na sua empresa. Mas você não quer perde-la, quer?
- Eu não entendi aonde você quer chegar – focalizei meus pensamentos em soltar-me da corda que amarrava minhas mãos por de trás da cadeira.
- Então eu te explico, já que você não irá cooperar... Nós trouxemos um contrato de transferência das atividades da diretoria e da posse da sua empresa, você irá assiná-lo, e só assim soltaremos você e a sua filha.
- Não! Por favor, não! A minha empresa é tudo o que eu tenho, sem ela eu não vou ser mais ninguém! Eu posso pagar o que você quiser, mas não tire a minha empresa de mim!
Era de se esperar que uma mulher e, acima de tudo, uma mãe fizesse todo o esforço possível para salvar sua filha. Mas eu novamente tinha deixado meus sentimentos egoístas e a ganância tomarem conta da situação, trocando o bem-estar da minha filha por trabalho, dinheiro e posição social.  Foi como se Mel tivesse sua importância diminuída à zero, e eu me focalizava única e especificamente em barganhar outro algo que não fosse o meu maior tesouro (e, naquele momento, maior e mais valioso também do que o próprio fruto do meu ventre).
- Ou você assina ou nós mataremos Mel bem na sua frente! – disse o bandido, corado em ira.
- Não vou assinar! Eu sei o quanto trabalhei para conquistar tudo o que tenho hoje, não vou deixar que isso escape das minhas mãos tão rapidamente!
Mas, após a exclamação, senti uma pontada, um sentimento extremamente pulsante e pungente que acobertou toda aquela egolatria. Naquele instante, foi como se a venda que eu mesma havia colocado em meus olhos e que me impediam de ter compaixão pela minha própria filha tivesse sido tirada, mas não por mim, por algo que dentro do meu coração falava mais alto, e batia mais forte – Amor.
Era Mel, que ouvira tudo o que eu tinha acabado de falar, e que estava sendo carregada por um dos comparsas até a nossa direção. Ela foi colocada em uma cadeira sem estar amarrada, pouco à minha frente
- Mel! Minha filha, você está bem?! – disse eu, soluçando desesperadamente em prantos.
- Mãe! Socorro, eu não sei o que está acontecendo, me trouxeram até aqui e estou com muita fome!
- Ah menina, cale a boca! Nós já te demos comida sim, foi você que não quis comer a sardinha com pão, que aliás estava uma delícia... Pensando bem, pelo menos sobrou mais para mim, AHAHAHA! – debochou o sequestrador.
E então, no mesmo instante consegui soltar a corda, que para o meu azar se espalhou pelo chão e imediatamente alertou os bandidos.
- Peguem ela! – disse o chefe deles, que ao tirar a máscara me pareceu ser o diretor.
Desesperadamente levantei, corri na direção de Mel, que mordeu uma das mãos de um dos comparsas, fazendo-o urrar de dor (vê-se aí a importância de escovar bem os dentes desde pequeno), mas quando ela tentou se soltar da cadeira, a altura da mesma - que era desproporcional à estatura da esperta menina - não deixou que ela saísse, arrastando a 'poupança' em movimentos ziguezague para se locomover e tentar sair dali.
Peguei-a com um dos braços, mas com aquela superfície extremamente lisa e cheia de água, tropecei.
- Chega! vocês acharam mesmo que conseguiriam fugir?! Todas as entradas estão trancadas, e saindo daqui ninguém poderia ajudar vocês, porque nós estamos no meio do nada! Agora, pela sua completa falta de obediência, teremos que tomar medidas mais drásticas em relação à sua punição...
- Pelo amor de Deus, não! - e, pesando em diversas coisas horríveis que poderiam acontecer comigo, comecei a chorar
Foi então que, como em uma cena de um daqueles filmes cheios de ação, morte e suspense que Charles, meu companheiro e herói chegou, e com a polícia.
- Parados! Mãos para cima os três! Fiquem onde estão e vocês não serão machucados!
Os bandidos correram, e para a nossa infelicidade, amado leitor, fugiram com êxito. Numa breve comparação de habilidade, eu diria que eles seriam como ratazanas. Extremamente ágeis e habilidosos, sumiram em segundos como a água que evaporava dos canos daquele galpão. Parecia que tudo já havia sido premeditado, planejado. A polícia então começou a busca pelo local, mas acabou por não achar nenhuma pista. Sem querer pensar muito mais sobre o assunto e com muito frio (era tanto que chegava a formar cristais de gelo nos bigodes e nas barbas dos policiais), fomos direcionadas até o carro de um dos oficiais para sermos levadas embora, nos conduzindo até Charles, que apareceu e nos trouxe cobertor e café, os quais só não nos esquentaram mais do que aquele bondoso gesto.
Eu estava apaixonada, definitivamente. Aquele salvamento representou não só a estabilidade financeira e social que eu tinha através da minha empresa, mas também e principalmente a salvação da minha filha, que era a pessoa mais importante para mim em toda a face da terra.
Ele se mostrou tão interessado a nos ajudar e nunca nos trouxe problemas, só soluções, soluções e mais soluções. Era como se Charles fosse nosso anjo da guarda, em prontidão para nos ajudar e a fazer o bem, em qualquer situação.
No meio do caminho, Mel já se encontrava dormindo, roncando como um porco, e com a cabeça encostada em meu ombro. C (se é que agora posso chamá-lo assim) não parava de me olhar, e eu, que não era ingênua, me fazia de difícil, fingindo que nem o conhecia.
- Sabe, Jane, você foi a melhor coisa que me aconteceu em anos. Eu nunca pensei que diria isso tão diretamente assim para você, mas eu estou diante da mulher mais extraordinária que eu conheço!
Era característico dele esse tom de voz sereno, calmo e galanteador. Mas agora o este último tinha falado mais alto. Foi como se, em sincronia com a fala, seus olhos dançassem, revelando sua jeitosa alma e seu benévolo coração, que me fizeram explodir de alegria, e, cativaram-me a acompanhar seu ritmo.
Chegamos em frente ao prédio, Mel estava dormindo. O oficial abriu a porta para mim, e Charles e eu descemos. Já era final de tarde, e o pôr do sol cumpria seu papel ao contornar as formas dos prédios e, ao mesmo tempo, criar um cenário perfeito para um pedido de namoro, com uma cesta de chocolates e um buquê de gardênias e camélias (os meus dois tipos preferidos de flores) e um ''SIM!'' seguido de abraços e apertos de mãos nos parabenizando.
Essa foi a expectativa que Charles criou em mim (=em meu coração, mente e espírito) ao procurar por algo nos bolsos de seu casaco (ativando meu senso de ingenuidade, assumi ser uma aliança). Era, na verdade, seu molho de chaves, que abriria a corrente da bicicleta dele, a qual se encontrava presa ao lado de um suporte na calçada. A hora de me pedir em namoro estava para chegar, mas definitivamente não hoje.

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