2. Boneca - Sol.

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— Você é tão sorridente, Sol!

— Você é muito engraçada, Sol!

— Você é tão fofa, parece uma bonequinha!

   As pessoas adoram repetições. É a verdade mais sincera que possuem, para além da verdade em si. Mas essa não importa. Adoram repetir o mesmo, dia após dia, até soar sincero o suficiente para os que as rodeiam acreditem. Não para elas mesmas, é claro. Afinal, se os outros aceitam, é o suficiente. Vivemos num mundo em que as necessidades próprias são geradas, pelas necessidades do próximo e isso é, no mínimo, decadente. Como o ser humano, a existência mais egoísta que já tocou a superfície da Terra, vive em prol do próximo? O que só nos leva a uma resposta mais decadente ainda: pela aparência do ato. Se você repete a incógnita, até que os outros considerem a incógnita de fonte fiel, você será bem visto. Simples matemática humana. É impressionante como todos caem nesse poço sem fim, em busca da aparência perfeita mental e fisicamente, porém, tal como existem os professores, existem os alunos e esses são as vítimas. Quem não souber fazer a conta corretamente, será forçado a aprender. Até se transformar num professor e repetir o esquema matemático com o próximo aluno. E eu sou, sem dúvidas, uma aluna. Todos os dias, os meus colegas me repetem o mesmo: o quanto sou alegre, o quanto sou engraçada e o quanto sou encantadora. O curioso é que o esquema realmente funciona. Eles repetem tanto isso que todos acabam por acreditar. Caem nesse poço infinito de mim e deliciam-se com a minha suposta água fresca e a luz em cima, os iluminando, contudo, eu nunca afirmei nada disso. Eu nunca demonstrei ser essa imagem que as pessoas criaram de mim. Nunca me colocaram numa mesa e me dissecaram, nunca souberam o que me preenche. Está muito além de veias e carne. Muito além de ossos e órgãos. Mas, sem dúvida alguma, não é alegria. Não é graça charmosa, na verdade, muito pelo contrário. E este fato de carne que esconde a minha alma, não é a boneca que os outros pensam que é. Com olhos grandes, rosto arredondado e um sorriso supostamente adorável — eu sou um exemplo de que a aparência ilude. Por isso que eu jamais vou dar valor a isso, a beleza é simplesmente mentirosa.

— Porque você está tão séria? — Heloísa perguntou, dando uma batida no meu ombro, com um sorriso. Típica professora.

— Eu estou sempre séria. — Respondi, acendendo o meu cigarro. Ela soltou uma gargalhada e começou a contar sobre o empolgante garoto que havia conhecido ontem e provavelmente, seria o seu próximo namorado. Não que ela procurasse, afinal ela nunca procura.  

 — E, obviamente, eu parei de lhe responder! Você acha que eu fiz bem, não é? 

Assenti em confirmação, continuando observando o céu, estava claro e vibrante. As nuvens estavam estagnadas, como se fosse um quadro renascentista, presas no século quatorze e aterrorizadas com a atualidade. Não são as únicas. Dei um pequeno sorriso para esse pensamento.

— Você está muito quieta! — Diogo exclamou, mal se aproximou de nós.

— Concordo! — Tiago respondeu, acabando de chegar. — Sobre o que estão conversando? — E com essa simples pergunta, todos explodiram em risos. Sentia pedaços de carne nas minhas faces, o sangue quente escorrendo pela minha garganta, como se alguém tivesse me assassinado. Buracos cavados nos seus olhos e vómitos vermelhos deslizavam infinitamente. Era tão... cómico.

O som do toque da escola interrompeu as brincadeiras hilariantes e causou alguns gemidos de reprovação. Largos grupos de pessoas começaram a se encaminhar para o portão e uma mão me puxava, enquanto eu encarava as suas costas. O seu cabelo era longo, cor de caramelo com alguns fios rebeldes loiros. Eu conseguia observá-la de perfil e o seu queixo se esticava, lhe dando um ar de ironia constante. Ela adorava falar que adorava mistérios. Que era um. Eu me questiono se eu a assassinasse e a enterrasse onde jamais fosse descoberta, ela ficaria contente. Longe de qualquer vestígio humano, afogada em terra, somente a floresta absorvendo a sua presença. Um mistério infinito. "A garota que adorava mistérios, desapareceu misteriosamente!" — isso daria um bom título para os jornais que estão sedentos por histórias trágicas.

— Sol? — A mesma mão que me puxava, se movimentava em frente aos meus olhos. Senti os meus olhos revirando para trás, enquanto dolorosamente retornava à realidade.  

— Oi. 

—  Você não vem para a aula? — Perguntou, me olhando com uma pontada de curiosidade. Os grupos de pessoas já haviam entrado e só existiam duas pessoas no passeio que levaria à entrada. O vento levantou o seu cabelo e, atrapalhadamente, ela o segurou com uma mão e o prendeu num rabo de cavalo com a outra. Por mais que eu tentasse ignorar os meus pensamentos, eu não conseguia evitar. Me aproximei passo a passo, até os meus olhos estarem encarando os dela. A sua estatura era muito maior, mas eu sentia a sua fraqueza à distância. Inspirei fundo, o cheiro da ingenuidade acordando algo dentro de mim. O suor deslizava pela minha testa, o meu coração feroz dentro do meu peito. Engoli o desespero que sentia e passei o meu dedo pela sua bochecha, sofrendo a sua vulnerabilidade sob os meus dedos. Ela seria uma vítima tão fácil.  

—  Heloísa! Sol! — Diogo nos chamou. Pisquei várias vezes, acordando do meu transe. A minha mão esquerda doía, dentro da minha mochila. 

— Estamos indo! —  A garota à minha frente respondeu, indo se encontrar com o rapaz que sorria para ela.

— Eu vou embora. — Afirmei para as duas figuras que me encaravam, virando costas e descendo a rua. Eu iria a pé, querendo evitar o máximo de contato humano possível, algo que não obteria indo de ónibus. Retirei a minha mão da mochila e sangue pingava. Eu havia agarrado a minha faca durante todo este tempo? Eu estive tão perto... A frustração e a exaustão me acompanhavam a cada pegada. Estava cansada. Cansada de me rotularem de tudo e de nada. De me mentirem e eu ser forçada a mentir. Desde que me vi como pessoa, eu sabia que não pertencia a este lugar. O oxigénio me machucava, os meus pulmões pediam misericórdia e eu apenas inspirava cada vez mais. Cada gota de chuva, queimava a minha pele sensível, como se cada uma, fosse um aviso para eu desistir e eu apenas encarava diretamente o céu, os meus olhos derretendo de dor. Eu estava cativa na minha realidade, como se fosse uma maldição. Como se eu tivesse nascido, marcada pela injustiça. Mas tudo possuí um limite. A infinidade não é infinita. Tal como a minha desilusão também não era. Não poderia existir mais um dia, na pose perfeita, cada traço desenhado delicadamente para se adequar ao contexto, naquele quadro aterrorizado. Eu queria ser a porra do pintor.

No momento em que pisei em casa, corri para o meu quarto. Numa mochila pequena, dobrei roupas inutéis e leves e coloquei o meu dinheiro. Respirando fundo, encarei a minha tia que me assistia, com um olhar perturbador. Eu já possuía noção de cada palavra que sairia daquela boca corrompida: Você vai morrer lá fora!

— Você vai morrer lá fora!

Você não é capaz de nada, como imagina sobreviver?

— Você não é capaz de nada, como imagina sobreviver?

Você me dá nojo.

— Você me dá, muito mais do que nojo.

E atingindo o meu ponto de saturação da previsibilidade, eu fui embora. Fechei a porta e aguardei o elevador silenciosamente. Eu não conseguia, nem podia acreditar no que havia feito. Eu estava sem casa. Sem futuro, nem presente. No entanto, era preferível não ter rumo, do que só viver no passado. Um calafrio arrepiou cada poro do meu corpo. O passado não existia mais. Naquele dia, naquela hora, naquele minuto, eu apaguei cada dia do meu passado, cada palavra, cada soco, cada toque que eu nunca desejei. Eu jamais voltaria a ser vulnerável, jamais voltaria a me forçar a qualquer coisa. Eu seria livre. Completamente livre. Entrando no elevador, o meu raciocínio começou a interpretar as minhas ações e me implorando para voltar para aquele apartamento, que nunca intitulei como casa, eu o ignorei. Peguei o meu celular e impulsivamente, planeei um esboço desastroso do que eu faria. Luna me respondeu confusa e preocupada e eu apenas, me despedi. Continuei o meu longo, longo caminho, apenas, refletindo no que os pequenos buracos no meu corpo estavam perdendo. Talvez, eu realmente era uma boneca. Membro por membro, fui constituída. Tecido firme, mas macio me unia. Largos botões escuros assistiam o mundo ardendo e o mais importante, tal como qualquer outra boneca, eu não tinha um coração batendo por empatia. Eu odiava quem observava as minhas costuras dolorosas e me apreciava, mas eu estava prestes de fazer algo que nenhuma outra boneca havia sido capaz: eu ia rasgar cada costura.

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