Quando assistimos um documentário sobre uma jovem cria tentando sobreviver no mundo selvagem, podemos observar cada detalhe seu. Cada passo curto e receoso do próximo. Cada tentativa de se alimentar. Cada olhar de curiosidade, sobre tudo e nada que a rodeia. E o expectador sempre torce pela sua sobrevivência. Sempre fornece avisos para a televisão, para não ir nesse caminho, devido ao leão faminto que se encontra por perto ou para desviar ali, que, sem dúvida alguma, encontrará água! Porém, o que o ser humano e a cria não compreendem é que sentir o que é natural - jamais será suficiente. Sentir uma gota de chuva escorrendo pelo seu pêlo, uma ferida dolorosa na sua pata, o aconchego da sua criadora - nunca adiantará de nada, aliás, piorará. E é curioso como ambos seres cometem esse erro. Confiam nas suas capacidades que não se apercebem que não são exclusivas e vivem assim. Vivem. Não sobrevivem. Contentam-se com o mimo adorável de suas mães, com o fato de possuírem visão, com o excelente direito de poder utilizar a voz, mas não se aprimoram. Não tentam sequer. Caem na ilusão da segurança e se deleitam com isso. Forçam os seus olhos a nunca mais abrirem para o mundo e permanecem. Simplesmente, permanecem. E isso é o que os torna a todos vítimas. Meras vítimas que serão engolidas pelo primeiro predador a aparecer. Parece que nem os animais, que deveriam se agarrar ao instinto com todas as forças, se apercebem do que realmente necessitam: sentir medo. O medo é a maior força que motiva um ser humano. É o que alimenta cada pensamento, cada tortura emocional. Sentir medo é o que diferencia viver e sobreviver. E eu sou um perfeito caso disso. Eu já cometi o erro de confiar. De acreditar na segurança, apesar de eu nunca a ter sentido. E por causa disso, eu apenas vivi. Vivi mergulhada na frustração e no rancor, sempre acreditando na segurança e no momento em que eu me apercebi que nada disso era real — eu sobrevivi. Sobrevivi em casa, apesar de mil e uma imagens pungentes e excruciantes costuradas no meu coração e sobrevivi na rua. Nunca mais me permiti confiar na presença de alguém. Nas suas palavras em vão. Essencialmente, nas suas atitudes em vão. Nunca aceitei nada que me ofereciam. Sempre duvidei. E hoje em dia, se eu estou caminhando nesta rua, apenas sentindo o vento feroz comemorando o inverno, é por causa disso, todavia, hoje, também está sendo o primeiro dia que estou duvidando disso.
— O que está pensando? — A voz da minha dúvida soou. Respirei fundo e a observei.
Ela havia retirado o carapuço e apenas, observava os seus arredores. Eu nunca a compreendi inteiramente, tal como ela nunca foi capaz do mesmo comigo. Observando o formato de sua cabeça, eu me perguntava que se eu partisse o seu crânio encantador e analisasse o seu cérebro, cada neurónio elétrico pulsando, eu seria capaz de sentir cada pensamento, cada pergunta, cada dúvida. E o fascinante, era o fato de eu já saber disso. De eu já possuir plena consciência de quem ela era. Do que ela gostava e desgostava. Do que ela seria capaz por mim e isso era assustador... Ela seria capaz de tudo por mim. Era mais do que contraditório eu me sentir assim, como se estivesse cativa no limbo. Eu já sabia que eu iria me sentir segura com ela, apenas nunca imaginei que esta seria a sensação.
— Em você. — Respondi, continuando a observá-la. Ela me ofereceu um olhar curto e voltou a assistir o nosso caminho. Eu conhecia cada célula deste ser e continuava sendo imprevísivel para mim.
— Porquê em mim?
— Porque eu me sinto segura. — Ela parou de caminhar e no exato segundo em que ela se virou para mim, a precipitação começou a acompanhar o vento. A Natureza era a nossa única testemunha e reagia a cada momento.
— Isso é algo ruim? — Os seus lábios moveram apressadamente.
— Pelo contrário. — Lágrimas teimosas insistiam em deslizar, porém eu não o permitia. Eu não queria que esta dúvida se transformasse em fraqueza. Ela cortou o espaço que existia entre nós e me abraçou. Algo que eu sabia que ela não suportava e o fez na mesma. E, finalmente, as lágrimas escorreram ávidas do seu final. A abracei de volta.
— Eu imagino cada pensamento que deve estar correndo pelo seu cérebro e desligue eles. Por um segundo, os desligue. Porque sou eu, Luna. Eu estou aqui. E estou aqui com você.
Antes que eu pudesse responder, uma voz se enunciou:
— Eu sabia que iria te encontrar!
Sol soltou o abraço rapidamente e observou o dono da voz. Ela o reconheceu no mesmo instante.
— Você sabe o que você fez?! — A voz perguntou, ou melhor, André.
— Se eu não soubesse, não teria o feito. — Respondi, sorrindo para o ser. A chuva atirava contra o asfalto, como balas.
André soltou um grunhido e começou a correr na minha direção. Eu engoli em seco e, instintivamente, me posicionei atrás da minha irmã. Toda a minha sobrevivência estava em causa, a sensação de calma que eu havia sentido, havia desaparecido completamente e eu admito que senti... medo. André era um ser humano muito maior do que eu, ele poderia me matar, se assim quisesse.
— Não... — Um som forte ecoou novamente, me acordando da minha letargia mental. Eu havia me perdido no meu inconsciente. Arregalei os meus olhos, para o que eu assistia. André tremia, enquanto tentava se arrastar pelo chão. O seu rosto estava completamente desfigurado e ele aparentava estar ferido por debaixo das roupas curtas também. Existiam inúmeros hematomas pelas suas pernas grossas e morenas. Eu observei a figura que continuava à minha frente, andando lentamente atrás de André. As suas mãos estavam cobertas por sangue e a sua respiração estava ofegante, existia um corte na sua bochecha. Eu a acompanhei, enquanto observávamos o ser que já estava morto, tentando fugir. Ele se arrastava vagarosamente pelo chão. Grunhidos escoltavam o choro alto. Um riso escapou dos meus lábios e vários outros, se seguiram.
— Fim. — Ouvi a minha irmã falar e em dois segundos, se colocou em cima de André e quebrou o seu pescoço, com agilidade. Um grito fugiu da minha garganta e os risos continuavam. Isto era um absurdo. Isto era surreal. Isto era-
— Você está bem?
A minha irmã.
— Sim. — Eu coloquei a mão sobre a minha boca, evitando rir, mas era incontrolável. André pediu por isto e recebeu. O karma mais justo do meu dia.
Sol pegou no braço esquerdo e começou a arrastar o cadáver pesado, eu indiquei o caminho até a um lago próximo de onde estávamos. Andamos silenciosamente, apenas o som da carne sangrenta sendo rasgada pela brutalidade que a minha irmã utilizava para o arrastar, se complementava aos sons da Natureza. Quando avistou o lago, ela colocou pedras debaixo das roupas de André e mergulhou com o corpo. O meu coração batia freneticamente esperando a volta de minha irmã e quanto mais ela demorava, mais eu cogitava a ideia de mergulhar, apesar de nunca ter sido capaz. Um cenário que eu nunca imaginei possível. No entanto, eu seria capaz por ela. Enquanto eu já estava retirando o meu vestido, a cabeça dela surgiu. Ela nadou apressadamente até mim e soltou um longo suspiro, quase sem fôlego. Olhou para mim, entortando a cabeça, provavelmente, se perguntando se eu iria mergulhar também. Se aproximando de mim, retornou o abraço que havia quebrado por um, agora, desconhecido, voltando a estabelecer a nossa aliança. Abraçando ela de volta, eu me apercebi que não era necessário eu partir o seu crânio encantador, nem remexer nos seus neurónios frenéticos, para saber que ela sempre iria me proteger. Eu jamais voltaria a sentir medo ou me perder na solidão. E foi naquele momento em que os meus pulmões fulminantemente voltaram a funcionar, em que eu voltei a respirar. Em que eu voltei a viver.
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União
Teen FictionUnião é o ato ou efeito de se unir duas ou mais partes distintas. Uma união pode acontecer de diversas formas, como a ligação ou combinação de esforços e pensamentos para um bem comum e é exatamente sobre isso que esta história é sobre. Sol e Luna s...