7. Desconhecido - Luna.

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   Eu nunca compreendi porque o desconhecido era o presente mais dolorosamente fatal que poderíamos receber. Na verdade, eu já havia atingido o porquê de ser, apenas não entendia o porquê do ser humano não impedir a amplificação da dor. Era um presente magnífico. Iludia quaisquer olhos e, talvez, a intenção fosse essa. Colocado com gentileza numa pequena caixa — aliás, do tamanho ideal — embrulhado delicadamente, com cuidado para não prejudicar o papel que escondia aquele segredo de nós e com um grande e clássico laço em cima que, captava cada imagem da nossa visão, era o presente que deveria ser o menos aguardado de nossas vidas e também o que as mudaria, porém, apesar de ser considerado como inesperado e impossível de prever, as pessoas sempre julgaram dominar essa imprevisibilidade, como se fossem os comandantes de suas vidas, calculando cada acontecimento, cada acidente possível, chegando ao ponto de até serem capazes de fazer o mesmo pelos outros. Conseguir ditar o amanhã de qualquer um, só com algumas informações. O segundo seguinte sendo sempre esperado e era por causa disso que o sofrimento controlava as suas mentes. As suas vidas eram ditadas pela antecipação, tal como os seus sentimentos e essa era a minha questão: como eram capazes de fazer isso a si próprios? O desconhecido tanto poderia ser odiado, como apreciado, não havia como inibir a sua existência, então era completamente desnecessário aumentar algo que poderia ter sido mais simples. Bufei, enquanto pegava um chiclete de minha bolsa e o colocava na minha boca. O ser humano não suportava a ideia da simplicidade e a mulher à minha frente era um exemplo disso. Havia sido diagnosticada com uma simples febre e devido às voltas erráticas de sua mente, ela havia se convencido de que estava gravemente doente. O médico insistia que haviam revisto todos os exames feitos, a pedido da mulher, e nenhum havia evidenciado prova de algo sério. Era literalmente fruto de sua imaginação e, no entanto, ela preferia ir contra provas materiais de que o seu julgamento do futuro estava incorreto, do que aceitar a ideia de que a sua clarividência não funcionava como ela desejava. A sua insistência me incomodava, a sua vinda ao hospital poderia ter sido rápida e tranquila, enquanto outras pessoas não possuíam sequer essa hipótese. Observei o corredor vazio, direcionando o meu olhar à porta do lado da máquina de café. A minha mãe não tinha opção. Após a lavagem de estômago, um psicólogo — que julgava ser tão brilhante quanto Freud — havia a cercado com perguntas, avaliando-a como instável para educar os seus filhos. Isto vindo de um megalómano que muito provavelmente havia se formado em Psicologia, para sentir o prazer da superioridade, ao se comparar com os seus pacientes. A ironia palpitava em cada palavra que fugia de sua boca. Doutor Francisco Estável Távares.

— Continua com raiva? — Sol questionou, ao abrir a porta do corredor. Cruzei os meus braços automaticamente, fazendo-a sorrir. — Até de mim?

— Eu quero que me explique o que aconteceu! — Exclamei, me levantando da cadeira desconfortável e encarando o ser que mordia um sanduíche, enquanto caminhava até mim.

— Não tenho o que te explicar. — Mordeu mais um pedaço. — Só foi um mal entendido.

— Sol, os seus braços estão carregados de hematomas! Isso apareceu por magia? — Questionei retoricamente e prossegui, quando ela abriu a boca para me dar uma resposta idiota. — Estamos praticamente vivendo neste hospital há dois dias e você mal me dirigiu a palavra, algo está acontecendo.

Ela me encarou por cima do sanduíche que cobria maior parte do seu rosto e suspirou, se sentando. Bateu a mão na cadeira ao lado, sinalizando para eu me sentar e obedeci, a curiosidade me controlando.

— Eu... Eu conheci alguém.

— Alguém que te machucou? O que ele queria? Foi no hospital?

— Calma! Me deixe continuar. — Pediu e eu assenti com a cabeça. — Eu conheci alguém que sabe quem nós somos e o que já fizemos. Especificamente, o que você já fez.

Franzi o sobrolho, enquanto ela pegava um cigarro e o acendia.

— Estamos dentro de um hospital! — Ela me encarou, me fazendo rir. — Mas eu já fiz várias coisas! Qual coisa ele sabe? Pode ter sido —

— Ele sabe que você empurrou o Fábio da varanda e foi ele quem causou o suposto "ataque de asma" dele. — Dobrou os dedos, ao falar. Arregalei os olhos, abrindo a minha boca levemente. — Ele sabe, Luna.

— Ah... É... — Nenhuma palavra saía da minha boca. — É impossível, Sol!

— Ele falou tudo claramente, encontrei-o num quarto aleatório quando a sua mãe foi internada. — Respirou profundamente, abanando a sua cabeça, o seu olhar transmitia exatamente como eu me sentia. Incrédula. 

— Merda. — Soltei.

— Que linguagem é essa?! — A voz rouca da minha mãe soou no corredor, se propagando. Eu e Sol giramos as nossas cabeças em sintonia, procurando pela fonte do som. — Vocês ainda estão aqui?

— Mãe, o que você está fazendo acordada? — Perguntei, me levantando e indo rapidamente até ela. Ela sorriu abertamente e me abraçou atrapalhadamente, devido à sua fraqueza e à bolsa de soro fisiológico que trazia, mas independente das circunstâncias, me abraçou como não fazia há muito tempo.

— Você não sabe que dia é hoje? — Sussurrou no meu ouvido. — No dia cinco de Agosto, de dois mil e um, a minha maior surpresa nasceu. Hoje se completam dezessete anos.

— Não acredito!— Sol falou alto, atrás de mim. Ela havia se esquecido do meu aniversário, mas não poderia a julgar, até eu havia me esquecido. Abracei a minha mãe de volta, sentindo a sua pele fria. — Luna...

— Eu sei, Sol. Está tudo bem. Eu também me esqueci.

— Não é isso, Luna!— Falou novamente agarrando o meu braço desesperadamente. O meu corpo rodou, ficando de frente para ela. Ela me apertou com mais força e saiu da minha frente, limpando a minha área de visão e me permitindo assistir o que acontecia.

Eu nunca havia compreendido o porquê do ser humano tentar prever e sofrer pelo o que poderia acontecer e, talvez, nunca iria ser capaz disso, mas, neste momento, eu queria ter tentando prever isto, apesar da minha contradição, eu queria ter previsto que esta seria a primeira surpresa do meu aniversário. Que o desconhecido iria me atacar hoje, como nunca atacara antes. Ele continuava igual. Os seus cabelos estavam brancos, o seu porte grande. Com uma regata branca e calças largas, ele caminhava descontraidamente com os meus irmãos que carregavam olheiras de cansaço e tristeza ao seu lado que logo soltaram a sua mão, ao verem a sua mãe. A nossa mãe. Ele me ofereceu um sorriso curto, porém os seus olhos revelavam exatamente o que revelaram há dez anos atrás. Ódio. Mas desta vez, eu podia revidar. Eu podia e iria revidar. Não me importei que fosse o meu aniversário, visto que para mim, aquele dia havia parado de ser uma comemoração do meu nascimento e, sim, da sua morte. 


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