6. Amanhã - Sol.

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— Mamãe, porque o papai não acorda?

— Acidente de viação! Dois feridos, lesões na coluna.

— Amanhã, filha... Amanhã, ele pode acordar.

   Ontem é um cadáver. Um defunto enterrado a sete palmos debaixo de terra. Sem direito a funeral com choros convenientes, palavras momentâneas e desmembramento de sua vida, somente os insetos possuem consciência do segredo que foi enterrado. O enfiaram grosseiramente num caixão e cavaram a cova mais funda possível para toda a sua extensão. Juntamente com ontem, padeceu cada preservação de hoje. Cada fantasia de que o amanhã chegaria. No entanto, existe uma razão para ninguém comparecer no funeral e derramar todas as suas tristezas — nem um ser acredita na sua morte. Se recusam, assassinando cada ideia que possa insinuar o que eles jamais aceitarão. O passado necessita estar vivo. Necessita prosperar, para fazer o hoje acontecer e alimentar a ilusão de que o amanhã chegará. O ser humano depende das suas garantias para ser capaz de estabelecer uma ligação com a vida. Para cometer quantos erros desejar e possuir tempo para os desfazer— tentar, pelo menos. Cada briga inútil, cada palavra horrível vertida em vão, cada segundo desperdiçado, é aceitável para eles, afinal eles sempre terão a possibilidade de restaurar cada momento perdido. Por isso, o passado jamais poderá falecer, as pessoas jamais lhe darão essa hipótese. Ele será forçosamente imortalizado por cada um, torturado nessa prisão temporal. Até que a mentira e a farsa atinjam um momento de rotura, pois, apesar dos esforços de cada um tentando penetrar a mentira sob suas peles, eles não podem enganar a realidade. O passado está morto. Ontem se foi. E cada garantia morreu devido a isso. Então, quando o hoje termina, a surpresa toma os seus corpos e mentes. O inesperado quebra cada osso, rasga cada órgão, impede cada vaso sanguíneo de transportar o sangue, ou seja, o coração deles falece com o passado. O amanhã se transformando no fantasma do cadáver, sendo a ilusão, sem vestígios, do continuamento da garantia. E o momento que me rodeia é a prova disso. O cheiro de frustração infiltra-se no ar, pessoas desesperadas caem de joelhos com as notícias supostamente chocantes e os quartos ocultam quantos términos ocorreram. À minha frente, uma mãe e uma criança se apertam uma à outra, tentando impedir que a esperança fuja, o tempo e a paciência as instigando a desistir. No final do corredor, uma mulher idosa observa o teto atentamente, talvez, orando a algum deus por misericórdia. Um médico saí de um gabinete e a atende rapidamente, o olhar pesado transmitindo as últimas notícias que ela ouviria. Ele suspira, enquanto se afasta se encaminhando para a mesma porta de que saíra, provavelmente, querendo confirmar o nome do próximo paciente para repetir o processo. O local deixava um sabor desagradável nos meus lábios, eu nunca havia gostado de hospitais. A medicina não possuía qualquer respeito pelo mistério da vida, preferindo cortar, abrir, explorar, trocar, invés de permitir que a Natureza agisse como sempre fora suposto. A ideia da morte era o que mais assustava o ser humano, não permitiam que fosse o que fosse, morresse. A não ser, claro, algo que eles não gostassem. Um ladrão, um assassino, as árvores, os animais, tudo o que atrapalhasse ou o modo que eles pensavam ou o modo que eles faziam dinheiro. A justiça e o equilíbrio eram invisíveis. Talvez, inexistentes. Suspirei, encarando a pessoa exausta que se sentava ao meu lado. Seu cabelo estava bagunçado e trilhos de lágrimas secas decoravam as suas bochechas lívidas, os seus lábios completamente feridos por causa de dentes nervosos. Os seus olhos tentavam se fechar, mas a teimosia e o arrependimento eram mais fortes, impedindo esse alívio de acontecer. Ela apertou a cadeira com força, os nós de suas mãos ficando brancos. Luna sempre acreditara no amanhã, permitindo as suas emoções agirem livremente no momento, com a garantia que sempre iria ter um próximo. Eu, era o seu oposto, sempre acreditara no passado. Como se eu tivesse de estar constantemente em movimento, com a adrenalina palpitando, porque cada segundo sempre era o último. A dor de minha irmã era tão notável que eu conseguia mastigá-la, navegando pela minha boca. Engoli, incomodada com a situação. Queria ser capaz de lhe roubar o arrependimento e enterrá-lo.

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