4. Eutanásia - Sol.

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— O que aconteceu?

—  Alguém te bateu?

—  Você não deveria estar morta?

   Sim, claro que sim. Sim, deveria. Como posso expressar um claro e firme sim de outro modo? Eu deveria estar morta. Ponto final. Cada célula do meu corpo respirava aliviada pela sua existência contínua não ter sido interrompida, enquanto sentia as horas seguintes prosseguindo sem falhas, como se um mero e comum acontecimento tivesse ocorrido, no entanto, o meu cérebro não era capaz disso. Ele se auto-mutilava implorando por respostas que a minha confiança fornecia e ele não aceitava. Cada corte sangrava pelo inesperado e, mesmo assim, ele preferia sofrer do que aceitar a realidade. O que é previsível, afinal era o meu cérebro. A realidade sempre fora demasiado dolorosa para eu conseguir prosperar, o único modo de suportar mais um segundo neste planeta contaminado, era viver em outro planeta mentalmente. Na minha consciência, eu podia ser feliz. Eu podia sonhar ilimitadamente. Eu podia realizar cada fantasia mais obscura e escondida dentro de mim, ao mínimo detalhe, sem erros. Sem eventos inevitáveis. Tudo podia se evitar. E parecia como se a minha mente tinha se trancado nessa realidade mental. Como se estivesse acamada, o soro, apenas, alimentando lentamente o suficiente para continuar sem pausas. E eu não sabia como sair desse coma. Não conseguia observar a realidade. Não conseguia sentir o vento que me pedia por uma dança. Nem a minha irmã que se inclinava contra a mesa, me encarando com olhos brilhantes, eu conseguia interagir com. Eu não saberia como, mesmo se tentasse! Eu havia matado um homem. Eu havia o olhado nos olhos, enquanto lhe roubei a vida sem piscar duas vezes. Eu havia o feito, porque sim. Afinal, ele já estava controlado e eu o fiz na mesma. Eu o assassinei. E o meu orgulho rodopiava com a vitória, o seu poder no seu esplendor, enquanto eu me questionava — porque não fui eu quem morreu?

— Você me ouviu? — A voz longínqua de Luna me extraía da minha tentativa de abrir a porta que enclausurava a minha suposta verdadeira realidade.

Só fui capaz de murmurar.

— Não.

Ela revirou os olhos por óbvia frustração e começou a se movimentar, algo a incomodava e a sua questão era a resposta disso.

— Eu não sei.

— O que não sabe?

— Eu estou te respondendo. — Ela retornou à sua posição e cruzou as pernas, me observando fixamente. O meu ser sentia a sua incerteza apreendida, por ela própria, no pequeno quarto. Eu possuía a capacidade de a observar como um anjo caído, cego por entre a névoa negra que a abraçava e o seu olhar era somente meu. Eu era o seu único farol por entre a neblina que preenchia a divisão, porém eu não podia ser o seu ponto de auxílio, se não conseguia ajudar-me a mim própria. Eu mergulhei na escuridão, causei isto a mim própria. Ela não. E enquanto eu não conseguisse, finalmente, voltar à superfície, eu jamais poderia ajudar a minha irmã. Respirei fundo, a dúvida pesando nos meus pulmões. — Eu não sei como sobrevivi. Eu agi conforme eu senti que deveria agir. Pelo seu bem.

— Nosso. — Corrigiu com solidez, antes de sair pela porta, procurando por sua mãe para lhe ajudar com o meu corte na face direita, cujo sangue começava a secar na minha bochecha. Franzi o cenho, levando o meu dedo indicador apressadamente à ferida e sentindo o seu comprimento. Soltei um palavrão ao tocar desajeitadamente no seu interior, ensopando o meu dedo com o líquido quente. Encarei o meu dedo e, inevitavelmente, lambi o meu sangue, o sabor deslizando pela minha língua, estimulando cada papila gustativa. Soltei um riso sarcástico para o meu reflexo na minha mente, esta era eu. Sem fatos de uma pessoa que poderia ser eu, sem disfarces, sem risos forçados - esta é a minha transparência. A minha doença. E ela possuía plena consciência do que se escondia por trás do sorriso, então porque está assim? A perplexidade esmagava o meu coração, cada batida cardíaca palpitando mais rapidamente do que a anterior. Agarrei o meu colar e me deitei na cama de Feles, estudando o teto: cor branca, com um tom amarelado e uma lâmpada simples. A minha mão se aquecia ao pressionar com força a pequena letra que simbolizava a minha vida. A nossa vida. E nem ela parecia estar me acordando daquele coma. Deitada naquela cama, com os lençóis brancos de linho e macios que me reconfortavam, com o colchão tenro aconchegando o meu corpo, se adaptando à minha matriz e o cheiro de finalidade adentrando pelas minhas narinas - eu me vi adormecendo da vida. Talvez, sempre estive. O momento em que eu me senti mais viva, foi quando vi o meu reflexo nos olhos da morte e quando ela sorriu para mim, eu não poderei mentir e falar que não retribuí. Vi na sua figura estabilidade, confiança, algo que a vida nunca foi capaz de me dar. E se era, nunca quis. Me negou a escolha de liberdade, de espontaneidade e por causa disso, eu negava a vida também. Me recusava a me forçar a vivê-la como era suposto. A apreciá-la, como éramos obrigados. A vida sempre me fora inútil. Simplesmente, inútil. Do que adiantava eu estar com os meus olhos arregalados para o mundo, com as minhas veias clamando por luz, por sentimento, por emoção, por algo que bombeie o meu pobre coração, se a única fonte que poderia me presentear com o que eu gritava a pulmões cheios, não me deu. Aguardei fielmente, aceitando a dor que me moldava, em vão. Vivi em vão pela vida. Pois, para ela, eu estava morta. E, agora, para mim, a vida estava morta. Abracei a morte que finalmente conseguiu me acordar. Me fazer sentir como se eu pudesse ser eu própria. Como se eu não fosse um monstro. Um sorriso cortou os meus lábios, as minhas lágrimas finalmente caíam com um porquê. A confusão havia se esvoaçado para longe. Eu sabia quem eu era. Eu sabia quem era suposto eu ser. O coma me afundava, os meus olhos entreabertos nublados com o meu pranto aliviado, quando uma sombra tampou a lâmpada, levantando a sua mão, revelando algum objeto nela. Sorri mais abertamente, ao pensar que seria a minha enfermeira, preparada com a injeção letal plenamente voluntária, mais conhecida como eutanásia. Sem ser necessário proferir nem uma palavra, nem um pedido, senti a pontada nas minhas costelas de inveja de todos que berraram por isto e nunca o receberam. Perderam a dignidade, a independência, a sua própria justiça, novamente, em prol de outros que não concordavam entre si sobre a definição de consciência pessoal e o suposto correto. Pelo menos, eu não passaria por esse processo cansativo. A mão da minha salvadora se aproximava e erguendo o meu braço, bebi pela última vez, a minha lágrima, a minha fiel companheira.

— O que você está fazendo? — Uma voz notoriamente aborrecida perguntou, se sentando na cama. Quando abri os meus olhos, piscando-os para facultar a minha visão, um tecido molhado me tocou, me fazendo resmungar com a dor repentina. — Nem reclama! — Exclamou, continuando a, presumivelmente, limpar a minha lesão. Me sentei do seu lado, para facilitar o seu esforço, mirando no seu olhar que se concentrava no meu rosto. Aguardei por uma palavra sua, mas ela se dedicava exclusivamente ao meu machucado, começando a me incomodar. Quando terminou de limpar, se levantou e eu agarrei o seu pulso, ficando cara a cara com ela. Nós precisávamos conversar.

— O que se passa com você? — Questionei genuinamente receosa da incerteza de minha irmã. - Você sabia do que eu seria capaz por você ou-

— Ou do que seria capaz por você própria, Sol! — Me interrompeu. — Eu sei que eu estava rindo, mas foi por causa da adrenalina, você... Você ficou cega pelo prazer, eu nunca havia te visto tão concentrada na sua vida inteira!

A solidão girou de agrado, apreciando o espetáculo.

— Eu pensei que você não se importava com isso... — Falei num fio de voz. A desilusão queria me pontapear, até cuspir toda a dor que preenchia o meu corpo. Luna cravou o seu olhar em mim e a sua desorientação nos envolvia.

— Mas, porque eu haveria de me importar? Você já falou mil e uma vezes sobre isso. Pensa que eu menti, quando falei que estava tudo bem? — Engoli em seco e se aproximou de mim. — É quem você é, eu também tenho os meus segredos e você sempre me apoiou! — Confessou.

— Então, porque está chateada comigo?

— Porque eu me importo com você, porra! — Passou a mão pelos cabelos, bufando. — Eu me preocupo tanto que, eu até fico doente. Você não se importa de se machucar, de quebrar algum osso, de morrer... Mas eu me importo! E se algum dia, algo te acontecer?

Eu a mirei, incrédula. Eu sempre julguei que a ansiedade por outro era mero teatro. Afinal, só porque alguém repara no óbvio, não significa que se importa com o óbvio, mas e se não existir óbvio e alguém se aperceber? Na verdade, não era apenas alguém.

— Me desculpe. — Sussurrei. — Isto é tão novo para mim.

— Eu sei. Eu sei que você nunca teve alguém por perto cuidando os seus caminhos, mas agora possuí. E possuirá para sempre. — Afirmou.

E foi assim que eu acordei do meu coma. Sentada numa cama, com a cabeça da minha irmã no meu colo, observando o seu semblante adormecido. Ela me fizera aperceber de que não existe somente vida e morte. Eu não necessito me apegar num símbolo para ditar as minhas próprias ações, muito menos de me forçar a fazer isso. Eu podia recusar os dois. A minha irmã acabou por ser a minha eutanásia. Ela foi quem cometeu o ato intencional de me proporcionar uma morte indolor devido a uma doença e após o meu padecimento, o fim do meu coma, eu recebi algo que nunca me apercebera que estava esperando por e nunca possuíra a capacidade de receber antes.

—  Eu vou, sem mais, preciso minha rosa, em paz... — Murmurei cantando para a minha irmã, enquanto passava os meus dedos por entre os seus cabelos, a vergonha aquecendo as minhas bochechas.

— Quebraram minhas forças, enfim, não importa a demora, desde que chegue a mim. — Parei o movimento, quando ouvi Luna terminando o pequeno trecho de música, enquanto sonhava.

Eu sempre vou chegar até você.

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