CAPÍTULO I

129 16 40
                                    


A história de vida de Anna e Henry está intimamente ligada com a minha. Em 19 de agosto de 1974, na cidade de Macaé, no Rio, meus pais, Larissa e Bernardo Santhiago, registravam meu nome como Sofia Santhiago no cartório local. Eles não imaginavam que esse nome, herdeiro direto de uma linhagem de funcionários públicos e burocratas supérfluos, seria o nome mais lembrado em feiras e congressos de cirurgia plástica pelo mundo. As aspirações da família sempre haviam sido, até então, a estabilidade e o esquecimento, uma espécie de atração irresistível pelo anonimato e pela segurança, atração essa que fiquei feliz em evitar. Minha personalidade, desde a tenra idade, sempre se assemelhou a um bisturi afiado: rasgava todos os véus que desejavam colocar em minha visão, detestava com todas as forças qualquer coisa que pudesse turvar minha vista, fazer com que me distraísse dos pequenos detalhes, das minúsculas janelas que me fariam enxergar um panorama mais amplo da realidade sensível. O pensamento científico, o método, foi o bálsamo que me libertou de um destino de apatia nas repartições governamentais. As ciências; a física, a química, a biologia foram as chaves das algemas familiares.

A medicina foi a escolha e o caminho era árduo; as incontáveis horas de estudo e sono perdido me garantiram uma vaga na federal do Rio de Janeiro, mas o sofrimento psíquico apenas começava. A carga de estudos exigida por uma das melhores faculdades de medicina do país incluía uma certa dose de sadismo, um último teste antes da liberação dos discentes para o mercado de trabalho, uma enorme quantidade de informação a ser absorvida em pouquíssimo tempo, quase nenhuma recompensa, muitos contratempos. Meu tempo livre era praticamente todo absorvido pelas filas das fotocopiadoras e refeitórios. Algumas poucas oportunidades para a descontração, a cervejada de fim de semana, quando não havia provas ou trabalhos para serem entregues.

Ainda no primeiro semestre comecei a morar com algumas amigas em uma república. As contas não eram tão altas e eu conseguia me manter com a ajuda de custo do estágio sem precisar apelar para o dinheiro que meus pais insistiam em mandar. Não fiz muitas amigas na faculdade devido à concentração excessiva que mantinha no curso. Eu ficava fascinada com a quantidade de conhecimento que precisaria absorver para me formar. Era um misto agridoce de sensações: de um lado a satisfação de aprender cada vez mais sobre o mundo; de outro a autoreprovação pela dificuldade em acompanhar tudo o que era apresentado. Na época existia uma outra Sofia, uma garota sem muito jeito para a comunicação e com um grande desejo (genuíno e ingênuo) de conhecer mais do mundo, da vida. Uma expectativa boboca que seria atropelada pela realidade brutal do campus. A velha Sofia foi assassinada ainda no primeiro ano quando estava a beira de um colapso, com as semanas de provas do segundo semestre se aproximando como um trem, apitando cada vez mais alto, e a capacidade de conciliação da leitura necessária para realizá-las embaixo de trilhos lodacentos. Ela - eu - conheceu Henry nesta época.

Rapaz "tranquilão" era como costumava chama-lo em meus pensamentos. Era o tipo de rapaz que minha mãe chamaria de bom partido - não que minha mãe tivesse um bom dedo para homens. A questão é que Henry, naquele dia em que resolveu sentar a meu lado no bandejão - o refeitório principal da universidade -, era um rapaz que mantinha o estado de espírito em condição rigorosamente oposta ao meu. Enquanto me descabelava em pensamentos sobre como faria a prova de Fisiologia Humana I ainda naquela noite, ele puxava assunto comigo e falava sobre uma coisa engraçada que lhe acontecera na academia durante a manhã. Era insano, era irresponsável, era temerário, e me fez entender que queria passar o resto da tarde ao lado dele. Mais tarde fizemos a prova de Fisiologia e demos boas gargalhadas discutindo o quanto havíamos nos ferrado. Decidimos jantar em um restaurante japonês para "comemorar". Folhas de Sakura caíam pelo pátio do estacionamento rodopiando no ar como se estivessem vivas, as preocupações com a prova do dia seguinte haviam se tornado menos importantes que cada uma daquelas pétalas cor de rosa que pavimentavam o caminho de pedras da fachada do restaurante.

IdentidadeOnde histórias criam vida. Descubra agora