CAPÍTULO IV

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O incêndio agira como uma Blitzkrieg nazista na psique de Henry, deixando-a em frangalhos, reduzida a pedaços desconjuntados, fragmentos perdidos do que antes fora um rapaz sorridente e sonhador. Alfredo, com sua pompa incorrigível, prometia que o tratamento que aplicara – através de longas sessões no consultório fechado com Anna e Henry -, havia coletado cada fragmento da mente cindida com a pinça da psicanálise, usando o método com desenvoltura e elegância, como aprendera nas melhores instituições de ensino do país. A identidade de Henry estava garantida pela, nas palavras de Alfredo, “excelência de seu tratamento especializado”.

Paulo havia me dito que teria de fazer quatro intervenções no paciente “Trelkovski” – nome codificado que ele e seus auxiliares usavam para se referira Henry. A primeira cirurgia durou três horas. Era a mais fácil, um limpeza simples da pele e inserção de enxertos além do planejamento dos próximos passos na reconstrução do tórax, bíceps, tríceps e músculos pontuais dos membros superiores. Algumas dificuldades pareceram ser apontadas na reunião que se seguiu à cirurgia, enquanto Henry ficava em recuperação em um quarto privativo, com Anna. Eu não tinha acesso, na época, aos relatórios que foram produzidos durante esta e outras reuniões e ainda n hoje não tenho todos os detalhes que gostaria do procedimento, mas algo parecia estar saindo errado. Minha intuição parecia apitar naquele momento. Como se alguma coisa estivesse sendo tramada a portas fechadas. A chuva descia pesada e o frio não ia embora nunca. Um ramo de eletricidade rasgou o céu da capital e parou no topo de um prédio antigo que podia ser visto da janela panorâmica.

Ao amanhecer percebi, através da onda de preguiça do corpo recém desperto, que o frio não se dissipara. Era como se tivesse tomada conta para sempre da cidade, dedos de calcário enregelante dançavam por todo o meu corpo. A primeira coisa que faço todas as manhãs é conferir a correspondência e ler os jornais. Minhas pernas tremiam quando vi a manchete dos dois principais tabloides da capital: “Frankeinstein renasce no século XXI”, e, a mais desonesta, “Monstro voltará à vida nesta semana”. A demonstração definitiva de baixeza jornalística.

Imediatamente, sem escovar os dentes, ainda com as pantufas, entrei no mercedes e disparei pela garagem. Andei paralelamente ao limite de velocidade e parei o carro na zona azul, o estacionamento rotativo pago de São Paulo. Anna demorou em atender ao meu chamado e, quando o fez, me abraçou como se não me visse há anos.

“Eles não têm esse direito, têm?”

Cinco anos de medicina, dois anos de mestrado, quatro anos de doutoramento e eu não sabia o que responder para minha melhor amiga.

A onda enregelante que encobria a cidade, o vento cortante que rasgava as esquinas escuras, lançava uma opressão dolorida no peito. Quando compreendi o que estava acontecendo toda a esperança se trancou em uma caverna escura, distante, escondeu-se para sempre do mundo.

Ao lado da biblioteca Mário de Andrade, uma hora depois, na Rua da Consolação, Uma fila enorme de repórteres se avolumava a cada minuto na entrada principal da clínica. Havia uma grande movimentação de câmeras fotográficas, filmadoras, microfones e equipamentos de transmissão. Cada repórter parecia uma exata cópia de seu colega, cabelos lisos alinhados, óculos com armação extravagante, barba bem feita e uma sede incomunicável por entrevistas exclusivas. Esperavam ansiosos enquanto eu observava de longe.

Ao meio dia um alvoroço tomou a multidão de câmeras e Paulo Descartes apareceu usando um jaleco mais branco que o Alaska, um broche brilhante da associação internacional de cirurgia plástica completava o uniforme solene. Ele se aproximou dos repórteres e começou a falar com sua voz de entrevistas – uma modulação grave que usava em palestras e filmagens executivas. Uma emulação, uma farsa que mantinha há anos e aprendera a aperfeiçoar durante os anos.

“O procedimento estará terminado ainda essa semana. É o caso mais complicado que já peguei em toda a minha vida. Precisamos restabelecer a capacidade de Henry de competir nos torneios pelo mundo afora representando nosso país. Estou confiante de que dará certo. Existe uma equipe de profissionais dedicados cuidando do futuro do Senhor Conceição. Faremos um milagre neste rapaz senhoras e senhores.”

Os flashes fotográficos metralharam meu marido e seus assessores. Os representantes da imprensa queriam mais um pouco do show, mas o Dr. Descartes deu as costas e os abandonou.

O arquiteto da encenação midiática, disso eu tinha certeza, era Paulo. Ele sempre foi vaidoso – de fato sempre pensei que essa seria a sua ruína -, mesquinho e soberbo. Fui enganada por anos pela casca perfumada e lisa, mas descobri, com o tempo de matrimônio, sua polpa amarga e rococó. Paulo estava usando Henry como um rato de laboratório, um voluntário para um número circense. Assim como usara – para minha eterna vergonha com minha ajuda - as vítimas de acidentes automobilísticos, as vítimas de sequestros relâmpagos, as vítimas de mutilações e brigas. Construindo fama e fortuna com a desgraça e humilhação de seus pacientes. Alcançando os céus com apoio da montanha de mutilados e deformados pela guerra diária que ocorre nos bastidores da nação. Quando Oppenheimer falou sobre a bomba atômica, em uma época em que incinerar pessoas ainda era uma tarefa que não podia ser feita em escala industrial, ele citou um texto sagrado Hindu, o Bhagavad Gita, alertando o mundo de que a ciência acabava de ser instrumentalizada pelo poder dominante. A ciência como meio, utilitária; e não como um fim em si mesma, uma descoberta. Era assim que Paulo descartes via a ciência. Como uma ferramenta de conquista, de subjugação do outro.

Os dias daquela semana se arrastaram como se tudo estivesse congelado. Havia uma névoa de incerteza e medo na metrópole. Um peso brutal se acumulava nas nuvens negras que tomavam conta do firmamento. Eu podia enxergar a silhueta de Paulo em meus pensamentos, recortado por sombras como em um take de filme noir, tremulando em meio a chispas de uma tempestade de raios. Imaginava meu marido na posição do Dr. Frankenstein, em seus devaneios de poder e dominação, fantasiando ser um criador, maquinando como faria para conquistar mais fama e dinheiro com o caso de Henry, a criatura, o monstro. Imaginava-o olhando para o mesmo céu que eu contemplava, envolvido pela eletricidade que deixava rastros incandescentes no horizonte acinzentado.

As redes sociais, com usuários famintos pela discussão da vida alheia, fervilhavam com posts e memes sobre o que os jornais noticiavam. Notícias falsas, manipuladas com habilidade maldosa, eram espalhadas ao sabor de um milhão de cliques, ganhando cada vez mais alcance, retirando momentaneamente a liberdade de Anna de sair às ruas sem ser perturbada pelos olhares famintos dos espectadores da tragédia.

Quando henry foi liberado pela equipe de Descartes, em meio a uma saraivada de luzes fotográficas, sua fisionomia me colocou uma dúvida sincera no coração. Avistei-o primeiramente à distancia. Havia uma familiaridade na face que me desarmou por alguns segundos. Eu não sei exatamente o que esperava, mas nunca tive fé na recuperação completa do rosto. No entanto, o que vi, naquele átimo de segundo, antes de Henry entrar no veículo de Anna, foi o rosto do rapaz sonhador da turma de medicina do segundo semestre de 1994.

Assim que o carro de Anna arrancou pela rua para escapar dos repórteres, entrei no mercedes e disparei pela avenida, meu coração dando pulos, a pressão arterial sofrendo uma aceleração que não podia ser contida.

“Preciso de você em casa, Sofia. Devo chegar ao apartamento em dez minutos”, disse Anna através de um serviço de mensagens de texto.

“Já estou indo para lá. Estou alguns metros atrás de vocês.”

Minhas pernas estavam doendo quando cheguei ao terceiro andar – o elevador estava quebrado como sempre. Anna me atendeu com prontidão e disse que Henry repousava em sua cama. Ele estava acordado, no entanto, e ficaria feliz de falar comigo por alguns minutos.

Andei pelo corredor e não me detive para acariciar Sansão, que estava deitado contra a parede. Entrei no quarto como se estivesse abrindo a porta para a saída de um inferno pessoal. A luz do janelão tomava todo o quarto, uma névoa de desinfetante se espalhava pelo ambiente iluminado. Sentado na cama, com faixas em toda a extensão do torso e braços, henry me encarava. Por um instante seu rosto ficou estático e pensei no pior, mas as articulações se movimentaram corretamente e cravaram naquele rosto familiar o mais belo de todos os sorrisos da terra.

Mas o frio continuava, rigoroso e incansável, à despeito da luz.

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