CAPÍTULO V

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Nas semanas seguintes me senti diariamente em um ringue. A rotina se converteu na luta diária contra jornalistas – que não abandonavam a fachada do apartamento de Henry nem por um minuto –, curiosos e a vaidade cega do Dr. Descartes. Ele acabara de dar uma entrevista em um talk show famoso da TV aberta quando o abandonei para sempre com seus espelhos e holofotes.

A casa que deixei para trás, acompanhando a fonte pelo retrovisor do mercedes, era muito maior do que jamais precisara. Ali, sozinho nos corredores ecoantes, Paulo poderia ouvir e admirar a própria voz.

Aluguei um apartamento no bexiga alguns dias depois. Mantive contato com Anna e Henry diariamente. Pouco a pouco os repórteres foram desistindo da caçada pela notícia a medida que novas manchetes, mais interessante e com maior potencial de distorção, apareciam na pauta editorial.

Mas as coisas estavam longe de voltar à normalidade. Como disse anteriormente, aquele seria o outono da mesquinhez, da mentira e da pequenez humana. E havia muito disso no frio da capital paulista.

No dia 19 de agosto de 2004, quando a praça em frente a meu novo apartamento parecia um cemitério de folhas secas, o telefone tocou três vezes antes que pudesse atender e falar com Anna.

Ela estava agitada, parecia cônscia de que algo terrível estava para acontecer, como se sua intuição estivesse dando choques de ansiedade em cada milímetro da pele. Falou lentamente a frase que me congelou para a sempre a espinha:

“O Henry morreu.”

Havia um quê de sonho nos acontecimentos daquele dia. Como se meus movimentos estivessem envoltos em uma água fria, tornando tudo de uma fluidez cinematográfica, como se o mundo fosse tomado por uma outra forma de organização física do tempo. Via as pessoas passarem pela janela aberta do carro como se estivesse rumando para o funeral de um pai querido. Era uma sensação de perda da sensibilidade da vida cotidiana, um mergulho no absurdo, num universo que deveria pertencer ao terreno da fantasia. Recordando a conversa que tivera ainda a pouco com Anna, eu continuei dirigindo em direção ao apartamento como se o mundo inteiro tivesse deixado de existir.

“Como assim morreu, Anna?”

“Ele não parece mais o mesmo. Nas últimas semanas imaginei que minha mente estivesse me pregando peças, mas... Deus, ele está mudado.”

“É natural que haja complicações em qualquer cirurgia meu amor. O que deve estar ocorrendo é uma perda de conectividade com o próprio rosto uma vez que passou tanto tempo desfigurado. Isso deve passar logo, é só uma fase...”

“Não, você não entende. Ele está mudado! Mudado! Eu não sei o que ocorreu naquela clínica, mas eles fizeram alguma coisa com o Henry.”

“O que exatamente?”

“Alguma experiência... eu não sei. O corpo dele está idêntico ao que me recordo, exceto por algumas imperfeições, algumas marcas de nascença que foram perdidas, mas... a mente dele mudou. Ele não parece a mesma pessoa.”

“Ele sofreu um trauma muito grande. Mesmo com o acompanhamento com o doutor Alfredo ainda existem sequelas difíceis de cicatrizar.”

“Não é questão de trauma. Existe alguma coisa que mudou a mente dele, Sofia!”

“Ele está tendo alterações de humor? Irritação ou tremores no corpo? lapsos de memória?”

“Sim. Sim, ele tem lapsos de memória. Nenhum tremor e talvez algumas alterações de humor, mas não sei dizer ao certo. Mas a memória dele está.... alterada...”

“O que quer dizer com alterada?”, nesse ponto estava ficando finalmente interessada.

“Ele não se lembra de algumas coisas. Quando fomos almoçar na casa de meus tios... bem, você ainda não os conhece, mas Henry era um grande amigo de Luan, meu primo. Quando fomos visita-los ele agia como se não o conhecesse. Era como se os anos de amizade tivessem sido esquecidos para sempre. Oh, Deus estou tão assustada.”

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