CAPÍTULO III

55 11 13
                                    

No início do outono de 2004, pouco antes do edifício Trelkovski arder em chamas na noite paulista, um pensamento recorrente martelava minhas têmporas entre as cirurgias e as consultas médicas que realizava na clínica. Paulo insistia em me recusar, me ignorava como se fosse uma de suas pacientes de nariz empinado que sonhavam com uma lipo, um peito artificial e um desses ricaços para ficar paparicando. Nunca idealizei demais o casamento e as relações conjugais, sempre tive um pensamento pragmático a esse respeito. Houve um momento – e me sinto realmente frustrada em dizer isso – em que pensei ter amado Paulo, mas esse instante de romantismo adolescente havia ficado no passado, muito além da realidade da vida a dois. Mas, ainda assim, nutria, com uma certa vergonha, uma necessidade de me afirmar diante de meu marido, como se fossemos coisas e nos pertencêssemos mutuamente. Em algum ponto acho que nos fundimos em uma única identidade. Em jantares com amigos, festas e confraternizações, nossas personalidades se complementavam, como se fossemos uma única pessoa, como se tivéssemos ali, naqueles ambientes sociais específicos, papéis a desempenhar para a sociedade, para as colunas sociais que adoravam nos fotografar para revistas e blogs de fofoca.

Acumulamos, devido ao trabalho na clínica, uma dúzia de amigos importantes, poderosos, famosos, pessoas que se converteram, ao longo dos anos de farsa conjugal, em ferramentas úteis para conseguir melhores clientes. De atores e atrizes que precisavam de uma aparência mais desejada pelo mercado das telenovelas, até empresários que precisavam manter seu narcisismo em dia para as negociações nos bastidores do poder da capital paulista. Não era á toa que a arquitetura dos prédios da capital seguia a linha dos edifícios espelhados com estrutura de aço: os espelhos eram a única razão de existir de boa parte dos diretores que atuavam ali; precisavam ver-se com frequência, admirar seu amor próprio e ignorar todo o fedor das ruas.

Quando estava junto de meu esposo, em determinados ambientes, praticava o mesmo narcisismo: um culto à identidade falsa de casal que criamos ao longo dos anos.

Foi naquele outono, num rompante de confusão mental, que decidi colocar 130 miligramas de silicone nos seios. Era a última tentativa de fazer com que Paulo se interessasse por mim. Teria feito eu mesma a operação, mas, seguindo protocolos de segurança, permiti que uma de minhas amigas de longa data, uma cirurgiã que trabalhava para mim, antiga colega de república na faculdade, realizasse o procedimento. Quando me olhei no espelho novamente, ainda naquela tarde, convalescendo, em estado letárgico devido aos medicamentos, enxerguei uma nova Sofia. Perguntei-me quantas Sofias iria enterrar antes de descobrir quem eu era realmente.

Traída pela intuição em meu rompante de confusão mental, fui rejeitada novamente por Paulo.

Paulo só tinha olhos para o trabalho, a clínica, antes um motivo de orgulho, agora se apresentava em minha vida como um tormento, como um erro do passado que não poderia consertar, como uma sina, um rosto desfigurado que jamais voltaria a sorrir. Enquanto eu me lamentava pelo declínio do casamento, meu marido se debruçava em livros e artigos científicos. Deixara expresso que não queria minha interferência na cirurgia de reconstrução de Henry. Essa seria sua grande obra – se referia ao procedimento nestes termos -, a chance de mudar para sempre a história da reconstituição facial. Dormiu durante dias no escritório, escondido em suas pranchetas com desenhos faciais e seus programas matemáticos de modelagem no computador ligado. Teve ajuda de uma consultoria especializada que não consegui rastrear. Alguns homens chegavam ao consultório a todo o momento levando novas informações. Telefonemas eram trocados diuturnamente, e-mails eram trocados todos os dias. Alguns cirurgiões importantes da Austrália e Reino Unido se interessaram pelo caso e a imprensa tentou uma aproximação, mas foi imediatamente expulsa pelos seguranças da clínica.

Eu não tinha ideia dos detalhes do procedimento, mas sabia da dificuldade daquela empreitada. Os danos causados pelo fogo são sempre os mais difíceis de resolver. Alguns casos não têm exatamente uma solução ótima. O melhor possível ainda passa longe de uma reconstituição adequada da face. Mas o principal desafio eram os músculos. Não fazia ideia de como Paulo tencionava reconstruir os músculos danificados pelo incêndio. A massa muscular estava tão debilitada – mesmo após as centenas de sessões fitoterápicas – que Henry não conseguia nem sequer levantar totalmente os braços. Como poderia voltar a Levantar pesos de 150 quilos nos ombros?

Mas, apesar do afastamento gradual que sofria por meu marido, ainda era capaz de reconhecer que Paulo sabia o que estava fazendo. Poucas vezes conheci alguém tão dedicado à profissão. Ele se tornara, com o passar dos anos, um cirurgião especialista em reconstrução e deixara de ser Paulo Descartes, o homem que conheci e amei. Essa mudança se deu gradativamente, como uma represa que é derrubada por uma goteira, a força da água desgastando lentamente a estrutura, formando rachaduras cada vez maiores...

Foi numa noite em que conversava com Anna pelo Skype que ouvi falar em Alfredo Montalvan. O rapaz, psicanalista renomado, doutor formado pelo Mackenzie em 1997, era o homem contratado pelo Doutor Descartes para acompanhar Henry antes do procedimento cirúrgico. Era um homem de aparência calma, ombros largos, praticante de judô e Krav Magá, grande defensor da eutanásia – o que causava polêmicas desnecessárias em seu nome -, crítico ferrenho dos governos do PT e do PSDB e um apaixonado pela psicanálise – defendo inclusive que ela tinha o status de ciência e criando animosidade entre alguns de seus colegas. A chave para entender a personalidade de Alfredo era justamente a contradição, o choque, a necessidade constante que ele possuía de se impor diante do outro. Ele próprio, um analista renomado, seria uma mente interessante a ser estudada em um divã.

Alfredo havia casado com uma escritora, Célia Montalvan, grande romancista brasileira jamais reconhecida. O divórcio ocorrera há mais de dois anos quando Célia assumiu a relação com outro escritor. Não sei que efeitos isso teve sobre ele, nunca o conheci a fundo o suficiente, mas talvez, tenha o empurrado ainda mais para o refúgio do trabalho, essa casamata em que sempre nos escondemos em momentos difíceis. O fato era que Alfredo era um dos membros mais ativos da comunidade de psicanalistas brasileiros, sempre lembrado em entrevistas na televisão, relativamente badalado em mídias sociais, nos canais de comunicação que discutiam o assunto, nas palestras e conferências da comunidade. Sua agenda era uma das mais requisitadas, sempre sendo convidado para dissecar os mistérios da mente humana. Menos a dele próprio, insondável, desconhecida do grande público.

Célia escreveria uma autobiografia, anos depois, em que contaria alguns fatos que manchariam para sempre a reputação de Alfredo. Essa autobiografia deflagraria uma guerra judicial sem precedentes nos tribunais paulistas.

Anna disse que conhecera Alfredo ainda antes da faculdade, quando este conduzia as sessões que tivera com sua falecida mãe após um acidente de carro que deixou sequelas irreparáveis na Dona Stella. Sempre que me falava sobre Alfredo, Anna parecia desconfortável e eu descobriria somente muito depois o porquê.

A terapia de Henry incomodava Anna. Ela me relatou que os problemas de relacionamento com Henry estavam piorando a cada dia, as brigas cada vez mais constantes, as discussões se iniciavam pelas mais irrelevantes alterações na rotina. Sansão estava agitado como nunca, latindo sem parar. Ela contou que um dia, após chegar das compras, Sansão estava no canto da cozinha, tremendo, com a cabeça baixa, ganindo a cada barulho que ouvia. Como se estivesse com medo de alguma coisa. Imaginei na mesma hora o mesmo que ela. Que henry, num acesso momentâneo de raiva havia batido no cachorro. Perguntei se ela achava que ele poderia ser capaz de...

“Não. Henry jamais tocou em mim. Ele não seria capaz, é um homem bom que está passando por um momento difícil apenas. Ainda é o mesmo Henry de sempre... voltará a ser...”, seus olhos estavam perdidos na webcam que picotava.

“Não falei por mal Anna. Sabe que amo vocês dois. Conheço o Henry quase tão bem como você. Sei que isso não é da índole dele, mas às vezes em momentos difíceis como este as pessoas mudam.”

“Henry nunca vai mudar! Ele sempre será meu Henry...”

Ela não me ouvia mais. Estavam ambos passando pelo momento mais difícil da terapia. Na época, tinha certeza de que Alfredo estava fazendo o possível para ajuda-los, mas não sabia o quanto seria possível restaurar o velho Henry. Estava quase chegando a conclusão de que o velho Henry estava morto para sempre. Nada que a cirurgia do dia seguinte àquele pudesse resolver de fato.

*

Henry chegou ao consultório em uma limusine paga por meu marido. Paulo o recebeu com flashes feitos por fotógrafos que ele próprio contratara. A expressão de Henry ao ser captado pela lente era de desalento e vergonha. A expressão de Paulo era de desafio e convicção pessoal. Era uma máscara para aparecer nos simpósios vindouros de cirurgia plástica.

Eles trocaram algumas palavras brevemente e Henry foi acompanhado por Anna e outras enfermeiras até a sala de espera privativa.

Fazia muito frio e tenho a impressão, ainda hoje, lembrando em perspectiva, que nunca mais houve calor no mundo.

IdentidadeOnde histórias criam vida. Descubra agora