CAPÍTULO II

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De Darwin a Dawkins, inúmeros cientistas se debruçaram sobre a questão do autorreconhecimento. Em experimentos conduzidos em macacos, relatados pelo próprio Darwin em um de meus livros de cabeceira: “A origem das espécies Vol. II”, biólogos descobriram que a fascinação dos animais pelos espelhos era mais do que simples curiosidade. Havia ali, naquela admiração pelo reflexo, uma espécie de entendimento que até mesmo animais irracionais, embora apenas os mais inteligentes, pareciam possuir: o autorreconhecimento enquanto indivíduos. A compreensão da própria existência.

Algumas pessoas podem andar por esse mundo durante uma vida inteira sem sofrer alterações relevantes em sua personalidade, mas grande parte delas, em algum momento, sofrerá uma mudança brusca o suficiente em sua vida para que sua autoimagem dê uma guinada e se refaça, mude, se transforme em algo que seja diferente da pessoa original. É como uma espécie de cisão que acontece com o indivíduo em determinados momentos da vida. Em geral em momentos que exigem uma decisão importante a ser tomada. Momentos em que a pessoa não pode mais continuar da forma que é por uma questão de sobrevivência. Foi assim comigo durante o segundo semestre da faculdade, foi assim com Henry após o incêndio, e foi assim com Anna quando foi chamada por Paulo para discutir a respeito da condição de seu marido.

“Tivemos uma semana difícil, Anna” começou Paulo. “O que passamos, eu e Sofia, não foi nem de longe o que deve estar sofrendo, sabemos disso querida. Uma catástrofe em todos os sentidos”.

Anna levou aos lábios o chá Earl grey que a empregada havia preparado.

“Essas últimas semanas têm sido como um sonho... um pesadelo. Muitos gritos à noite. Henry ainda está assustado com o que aconteceu... eu também”, ela bebericou novamente o chá.

“No começo não é fácil”.

Eu odiava cada segundo daquela conversa. Havia conversado com Paulo durante uma semana sobre a proposta que ele pensava em fazer. Seria um passo arriscado, mas eu não conseguiria dizer não para seu intento. Era arriscado, mas era a única forma de devolver para Henry o que lhe havia sido tirado.

“Sabe Anna”, começou Paulo desistindo de sua xícara de café e depositando-a sobre a mesa de vidro. “Eu venho pensando em como lhe dizer isto há dois dias e ainda não encontrei uma forma adequada. Então decidi ser direto. Você sabe que Henry é um amigo importante e prezamos muito por seu bem estar, sempre estivemos juntos nestes últimos oito... dez anos? Talvez mais. A questão é que amamos Henry como se fosse da família e ainda estamos transtornados com o ocorrido...”.

Anna demorou um pouco para entender que Paulo não estava sendo nada direto. Eu podia ver seus olhinhos tremendo na luz da manhã.

“Deixe-me dizer de uma vez: estamos dispostos, com a anuência de seu marido, a realizar uma cirurgia reconstrutiva sem custo. Seria uma espécie de experiência. Analisaremos o caso de seu marido e adotaremos a melhor estratégia para a intervenção hospitalar. Ele receberá apoio psicológico com um analista que será pago pela clínica e faremos a reconstituição de sua face e músculos. Talvez algum dia ele volte a competir, mas não posso garantir nada até ver os resultados da fisioterapia”.

O silêncio que Anna fez em seguida me lançou uma inquietação por todo o corpo. Enquanto as mãos abandonavam a xícara de chá inglês sobre a mesa, ela mantinha no rosto um olhar severo que parecia esconder uma mistura de desconfiança e esperança. Se aquilo tivesse saído de minha boca talvez ela tivesse aceitado com mais rapidez, mas Paulo era uma pessoa de natureza ríspida e sempre havia ficado, para Anna, naquela zona cinzenta de amigos que mantemos mais devido a outras amizades comuns do que pela afinidade. Suas mãos pequenas acariciaram uma à outra enquanto suas sobrancelhas se contorciam por cima do rosto duro e pensativo.

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