PRÓLOGO

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Dizem que se rumarmos indefinidamente para o norte, sem nenhuma pretensão de destino ou planejamento definido, chegará algum momento em que, numa questão de perspectiva, estaremos indo em direção ao sul, direção oposta da qual partimos inicialmente. Isso acontece porque as noções representadas na rosa dos ventos estão condicionadas a um contexto bidimensional que não é capaz de abarcar a realidade multidimensional do espaço. Pra resumir a conversa: estamos sempre perdidos, sem direção, a sós diante do imponderável. Por mais que achemos que o caminho escolhido é cristalino e que apreciemos o sabor doce do autoengano, ainda assim a humanidade está à deriva, esperando pacientemente para ser levada pelas ondas do acaso até a enseada da solidão. Sem mãos dadas, sem promessas, sem esperança. Assim foi com Anna. Assim foi comigo. Como uma pedra caiada que despenca da encosta para acordar uma dorminhoca, assim percebi essa verdade incomoda sobre o casamento: a melhor forma de ficar sozinhos juntos.

Existe uma metáfora fraquíssima que fala que a vida é como uma estrada: um longo percurso em território desconhecido, uma pista de asfalto liso que precisa ser desbravada pela intrepidez humana. É possível se contentar com esta visão, mas tenho a impressão de que a maioria das pessoas não está olhando atentamente para a estrada. A pista não é lisa se você prestar a devida atenção. O terreno é acidentado, a manutenção não é feita há tempos, os pneus trepidam a todo momento e se você olhar para o lado do carona verá que o banco está vazio como sempre esteve. Há ainda aquelas pessoas de sempre no acostamento que observam atentamente e torcem para que o carro capote, para que você perca o controle e deslize para fora da pista.

O carro metafórico em que Anna estava sofreu o mais grave dos acidentes. Um daqueles eventos da vida que só acontecem uma única vez, mas marcam para sempre a história. Começou com um incêndio que tomou conta do edifício Trelkovski, um prédio antigo que mantinha apartamentos alugados para a classe média paulista. A edificação não possuía as mais adequadas políticas de segurança contra incêndio e o prejuízo era certo assim que os primeiros moradores, nos andares seis e sete, perceberam o forte odor de fumaça e móveis queimados.
Os redatores dos manuais de comportamento para incêndios ficariam escandalizados com a maneira pouco ordeira e atabalhoada com que os moradores decidiram abandonar suas casas, pés descalços corriam em desespero pelos corredores do edifício, senhoras eram empurradas por adolescentes com camisas de marca, extintores de incêndio eram chutados por alguns apressados que tentavam escapar das chamas, um pandemônio digno da mentalidade pequeno burguesa: na primeira evidência de crise é cada um por si, "Corram para as colinas", um Deus vos acuda de pequenos proprietários e advogados metidos. Não quero que me tomem por insensível, mas humor negro se faz necessário para aliviar o peso das palavras que se seguirão.

Ainda naquela noite uma pessoa ardia no sétimo andar. Os gritos ecoavam no corredor numa sinfonia funesta em mi maior, como se saíssem de salas mal iluminadas em Guantânamo ou Abhu Graib. A pele fervia, estalava, criava bolinhas inflamadas enquanto um dos globos oculares derretia pelo calor intenso. O homem que rolava no chão tentando apagar as labaredas se chamava Henry da Conceição, na época marido de Anna e um grande amigo de minha família. Minutos antes de precisar rolar no chão na esperança vã de apagar as chamas, ele tentara abrir a porta para salvar alguns equipamentos de trabalho. A súbita alteração de pressão fez com que a sala explodisse de dentro para fora como se fosse ano novo, as chamas consumiram imediatamente o oxigênio ao redor, ávidas por se alastrar pela sala e lançar seus dedos destrutivos pelo carpete e mobília. A dança do fogo gingou por todo o sétimo andar e contagiou a todos os apartamentos vizinhos, o ritmo tomou conta da cozinha dos Fonseca - inquilinos que sempre zelaram pela boa convivência -, o oxigênio alimentou a valsa da morte por mais dois minutos e outra explosão foi ouvida.

Henry vai sobreviver, ele não teve sorte o suficiente para morrer naquela sexta feira 13. Ele morreria anos depois, muito depois das cicatrizes se tornarem estáticas marcando sua pele para sempre como se fosse feita de cera, muito depois das semanas desperdiçadas na unidade de tratamento intensivo do Hospital das Clinicas, muito depois das quatro cirurgias corretivas e enxertos, muito depois das horas de fisioterapia, muito depois do diagnóstico que o tiraria para sempre da perspectiva de continuar no atletismo, muito depois das inúmeras pessoas que se sentiram enojadas com seu novo rosto continuarem encarando-o num exercício de resistência pessoal, muito depois dos incontáveis comentários de canto de boca em Shoppings e supermercados que elevavam sua sensação de mal estar diante do mundo ao patamar da humilhação pública cotidiana.

Para efeito de proteção das pessoas envolvidas troquei todos os nomes e me dei à liberdade de preencher as lacunas de minha pesquisa e memoria com uma ficção plausível. O sofrimento das famílias envolvidas já é grande demais para que sejam citados neste documento. Ainda assim não podia deixar de escrever estas palavras, por mais dolorosas que elas sejam. Os acontecimentos daquele outono, três anos depois do incêndio, quase sete anos após o casamento de henry e Anna, marcaram para sempre a minha trajetória. Todos os sonhos se perderam naquele outono. Foi o outono em que decidi colocar 130 miligramas de silicone numa frustrada tentativa de salvar meu casamento com Paulo, o outono em que o acaso se manifestou em suas forma mais desumana, o outono em que um bêbado adormecera com um cigarro aceso em sua confortável poltrona no sexto andar causando a morte de quatro pessoas e condenando várias outras a anos de insônia e medo, o outono em que a mesquinhez - como se verá - de alguns poucos, pessoas com a envergadura moral de um piolho, condenou famílias inteiras a uma derrocada da qual seria impossível se recuperar. Foi o outono da inveja, da pequenez e da loucura. A mim restava apenas, como uma folha em um enorme carvalho, no outono, murchar e cair.

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