Era um burrinho pedrês, miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro,
ou não sei onde no sertão. Chamava-se Sete-de-Ouros, e já fora tão bom, como outro não
existiu e nem pode haver igual.
Agora, porém, estava idoso, muito idoso. Tanto, que nem seria preciso abaixar-lhe a maxila
teimosa, para espiar os cantos dos dentes. Era decrépito mesmo à distância: no algodão
bruto do pêlo — sementinhas escuras em rama rala e encardida; nos olhos remelentos, cor
de bismuto, com pálpebras rosadas, quase sempre oclusas, em constante semi-sono; e na
linha, fatigada e respeitável — uma horizontal perfeita, do começo da testa à raiz da cauda
em pêndulo amplo, para cá, para lá, tangendo as moscas.
Na mocidade, muitas coisas lhe haviam acontecido. Fora com prado, dado, trocado e
revendido, vezes, por bons e maus preços.
Em cima dele morrera um tropeiro do Indaiá, baleado pelas costas. Trouxera, um dia, do
pasto — coisa muito rara para essa raça de cobras — uma jararacuçu, pendurada do
focinho, co mo linda tromba negra com diagonais amarelas, da qual não morreu porque a
lua era boa e o benzedor acudiu pronto. Vinha-lhe de padrinho jogador de truque a última
intitulação, de baralho, de manilha; mas, vida a fora, por amos e anos, outras tivera, sempre
involuntariamente: Brinquinho, primeiro, ao ser brinquedo de meninos; Rolete, em seguida,
pois fora gordo, na adolescência; mais tarde, Chico-Chato, porque o sétimo dono, que tinha
essa alcunha, se esquecera, ao negociá-lo, de ensinar ao novo comprador o nome do animal,
e, na região, em tais casos, assim sucedia; e, ainda, Capricho, visto que o novo proprietário
pensava que Chico-Chato não fosse apelido decente.
A marca-de-ferro — um coração no quarto esquerdo dianteiro — estava meio apagada:
lembrança dos ciganos, que o tinham raptado e disfarçado, ovantes, para a primeira
baldroca de estrada. Mas o roubo só rendera cadeia e pancadas aos pândegos dos ciganos,
enquanto Sete-de-Ouros voltara para a Fazenda da Tampa, onde tudo era enorme e despropositado: três mil alqueires de terra, toda em pastos; e o dono, o Major Saulo, de
botas e esporas, corpulento, quase um obeso, de olhos verdes, misterioso, que só com o
olhar mandava um boi bravo se ir de castigo, e que ria, sempre ria — riso grosso, quando
irado; riso fino, quando alegre; e riso mudo, de normal.
Mas nada disso vale fala, porque a estória de um burrinho, como a historia de um homem
grande, é bem dada no resumo de um s dia de sua vida. E a existência de Sete-de-Ouros
cresceu toda em algumas horas — seis da manhã à meia-noite — nos meados do mês de
janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale cio Rio das Velhas, no centro de Minas
Gerais.
O burrinho permanecia na coberta, teso, sonolento e perpendicular ao cocho, apesar de estar