Sarapalha

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Tapera de arraial. Ali, na beira do rio Pará, deixaram largado um povoado inteiro: casas,

sobradinho, capela; três vendinhas, o chalé e o cemitério; e a rua, sozinha e comprida, que

agora nem mais é uma estrada, de tanto que o mato a entupiu.

Ao redor, bons pastos, boa gente, terra boa para o arroz. E o lugar já esteve nos mapas,

muito antes da malária chegar.

Ela veio de longe, do São Francisco. Um dia, tomou caminho, entrou na boca aberta do

Pará, e pegou a subir. Cada ano avançava um punhado de léguas, mais perto, mais perto,

pertinho, fazendo medo no povo, porque era sezão da brava da "tremedeira que não

desamontava — matando muita gente.

— Talvez que até aqui ela não chegue... Deus há-de... .

Mas chegou; nem dilatou para vir. E foi um ano de tristezas. Em abril, quando passaram as

chuvas, o rio — que não tem pressa e não tem margens, porque cresce num dia mas leva

mais de mês para minguar — desengordou devagarinho, deixando poços redondos num

brejo de ciscos: troncos,ramos, gravetos coivara; cardumes de mandis apodrecendo;

tabaranas vestidas de ouro, encalhadas, curimatãs pastando barro na invernada; jacarés, de

mudança, apressados; canoinhas ao seco, no cerrado; e bois sarapintados, nadando como

búfalos, comendo o mururê -de-flor-roxa flutuante, por entre as ilhas do melosal. Então,

houve gente tremendo com os primeiros acessos da sezão.

—Talvez que para o ano ela não volte, -vá s'embora...

Ficou. Quem foi s 'embora foram os moradores: os primeiros para o cemitério, os outros

por aí a fora, por este mundo de Deus. As terras não valiam mais nada. Era pegar a trouxa

e' ir deixando, depressa, os ranchos, os sítios, as fazendas por fim. Quem quisesse, que

tomasse conta.

Aí a beldroega, em carreirinha indiscreta — ora-pro-nobis! ora-pro-nobis! — apontou

caules ruivos no baixo das cercas hortas, e, talo a talo, avançou. Mas o cabeça-de-boi e o

capim-mulambo, já donos da rua, tangeram-na de volta; e nem pôde recuar, a coitadinha

rasteira, porque no quintal os joás estavam brigando com o espinho-agulha e com o gervão

em flor. E, atrás da maria-preta e da vassourinha, vinham urgentes, do campo — ôi-ái! —

o amor-de-negro, com os tridentes das folhas, e fileiras completas, colunas espertas, do rijo

assa-peixe. Os passarinhos espalhavam sementes novas. A gameleira, fazedora de ruínas,

brotou com o raizame nas paredes desbarrancadas. Morcegos das lapas se domesticaram na

noite sem fim dos quartos, como artistas de trapézio, pendentes dos caibros. E aí, então,

taperização consumada, quando o fedegoso em touças e a bucha em latadas puderam

retomar seu velhíssimo colóquio, o voado fechou-se em seus restos, que nem o coscorão

cinzento, de uma tribo de marimbondos estéreis.

SagaranaWhere stories live. Discover now