São Marcos

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Naquele tempo eu morava no Calango-Frito e mm acreditava em feiticeiros.

E o contra-senso mais avultava, porque, já então — e excluí da quanta coisa-e-sousa de nós

todos lá, e outras cismas corriqueiras tais: sal derramado; padre viajando com a gente no

trem; não falar em raio: quando muito, e se o tempo está bom, "faísca"; nem dizer lepra; só

o "mal"; passo de entrada com o pé esquerdo; ave do pescoço pelado; risada renga de

suindara; cachorro, bode e galo, pretos; e, no principal, mulher feiosa, encontro sobre todos

fatídico; — porque, já então, como ia dizendo, eu poderia confessar, num recenseio

aproximado: doze tabus de não-uso próprio; oito regrinhas ortodoxas preventivas; vinte

péssimos presságios; dezesseis casos de batida obrigatória na madeira; dez outros exigindo

a figa digital napolitana, mas da legítima, ocultando bem a cabeça do polegar; e cinco ou

seis indicações de ritual mais complicado; total: setenta e dois — noves fora, nada.

Além do falado, trazia comigo uma fórmula gráfica: treze consoantes alternadas com treze

pontos, traslado feito em meia. noite de sexta-feira da Paixão, que garantia

invulnerabilidade a picadas de ofidios: mesmo de uma cascavel em jejum, pisada na ladeira

da antecauda, ou de uma jararaca-papuda, a correr mato em caça urgente. Dou de sério que

não mandara confeccionar com o papelucho o escapulário em baeta vermelha, porque isso

seria humilhante; usava-o dobrado, na carteira. Sem ele, porém, não me aventuraria jamais

sob os cipós ou entre as moitas, E só hoje é que realizo que eu era assim o pior-de-todos,

mesmo do que o Saturnino Pingapinga, capiau que — a história é antiga — errou de porta,

dormiu com uma mulher que não era a sua, e se curou de um mal-de-engasgo, trazendo a

receita médica no bolso, só porque não tinha dinheiro para a mandar aviar.

Mas, feiticeiros, não. E me ria dessa gente toda do mau milagre: de Nhá Tolentina, que

estava ficando rica de vender no arraial pastéis de carne mexida com ossos de mão de

anjinho; dos vinténs enterrados juntamente com mechas de cabelo, em frente das casas; do

sapo com uma hóstia consagrada na boca, e a boca costurada para ele não cuspir fora a

partícula, e depois batizado em pia de igreja, e, mais, polvilhado de terra de cemitério, e,

ainda, pancada nele sapo até meio morrer, para ser escondido finalmente no telhado de um

sujeito; e do João Mangolô velho de-guerra, voluntário do mato nos tempos do Paraguai,

remanescente do "ano da fumaça", liturgista ilegal e orixá-pai de to dos os metapsíquicos

por-perto, da serra e da grota, e mestre em artes de despacho, atraso, telequinese, vidro

moído, vuduísmo, amarramento e desamarração.

Bem... Bem que Sá Nhá Rita Preta cozinheira não cansava de me dizer:

— Se o senhor não aceita, é rei no seu; mas, abusar, não deve-de!

E eu abusava, todos os domingos, porque, para ir domingar no mato das Três Águas, o

SagaranaWhere stories live. Discover now