14 de abril de 2018 - 03:27 da madrugada.
Aquilo foi sem dúvidas a coisa mais emocionante que me aconteceu em 27 anos de vida. Para uma adulta que trabalhava num bar no centro da cidade, tinha que limpar vômito no banheiro, chegar em casa depois das duas horas da madrugada, levar uma alimentação regada a pizza fria e coca zero torcendo para não engordar e olhar para meu diploma da faculdade que nunca exerci jogado debaixo do sofá, sem dúvidas;
AQUILO FOI A COISA MAIS INCRÍVEL DA MINHA VIDA!
Afinal, quantas pessoas tem um amigo que é seu vizinho e ainda por cima te leva para viajar no tempo numa banheira verde com lascas enormes na cerâmica?
Toco uma pequena folha recortada de um jornal antigo datado do dia 16 de abril de 1912. O local que escolhemos para viajar no tempo? Se você não está familiarizado com a data, eu dou um spoiler: Titanic.
Algumas fotos retiradas da internet mostravam o transatlântico a aproximadamente 3800m no fundo do mar. Judiado pelas décadas que se passaram, coberto de algas e resíduos marinhos, lá estava ele, recluso. O gigante do mar de 1912 nomeado naquela época pelo seu criador como "inafundável''.
O recorte de uma revista de Portugal me chama a atenção e não consigo segurar um riso de sarcasmo;
"A beleza trágica de uma catástrofe horrível"
Quantas histórias terminaram ali? Quantas começaram?
Me vejo perguntando o inevitável, mesmo Jonathan tendo me alertado para não colocar sentimentalismo nisso. Aquelas pessoas já estavam mortas, nada poderia ser feito.
Eu não sei se a ideia surgiu por que há algumas semanas atrás estávamos assistindo na tela de sucessos o filme de James Cameron ou por que em todas as reportagens que pesquisamos se falava de um quadro muito valioso que teria afundado junto com o restante do navio.
Jonathan além de esquisito gostava de colecionar quadros. Segundo ele aquele quadro teria que fazer parte do seu pequeno e organizadíssimo sala living e por que queria tentar uma viagem mais distante, ou seja, 106 anos de distância. Loucura? Com certeza.
Poderia tentar uma viagem no tempo que não nos levasse para um perigo iminente ou que não morrêssemos congelados. Por que não tentar roubar alguma pintura inédita do Picasso? Ou assistir Van Gogh arrancar a orelha fora? Se tudo desse errado morreríamos congelados e pronto. Dois picolés de chuchu no fundo do oceano Atlântico.
Mas por que diabos eu aceitei embarcar numa viagem dessa?
Nada de tão animador acontecia na minha vida. Moro num apartamento que não tem quarto e meu vizinho do andar de cima joga as bitucas de cigarro na direção da minha janela, fazendo todas aquelas cinzas caírem na minha roupa pendurada no varal improvisado com arame e barbante que fica do lado de fora. Além do show do David Bowie a outra única coisa emocionante da minha vida foi sair da minha antiga casa, meter o pé na bunda da minha mãe sugadora de energia e vir morar sozinha.
Por que não tentar ganhar um dinheiro numa dessas idas ao passado? Eu sentia que ficaria para titia. Por que não ficar para titia rica?
Acho que por isso me dei bem com meu vizinho de dois andares a cima quando cheguei aqui. Ambos somos solteirões, trabalhamos no modo "eu só preciso sobreviver mais essa semana" e andamos olhando para o chão quando andamos pelas ruas, na esperança de que encontraremos algum dinheiro solto que nos faça sentir a vaga sensação de que a semana valeu a pena e que a sorte resolveu olhar para nós.
Continuo encarando fotos do que era um charmoso navio a lá "Belle époque" quando sou abruptamente arrancada dos meus devaneios por uma voz histérica:
- ROSA, TRAZ MINHA CAIXA DE FERRAMENTAS! – Jonathan grita do banheiro e não sei por que faz isso, já que como o apartamento é minúsculo, eu poderia escutar até se sussurrasse.
- Onde está? – paro no meio da divisão da cozinha e olho para os lados
- EMBAIXO DA PIA, UMA MALETA VERDE!
Agacho e puxo a pequena portinha. Um cheiro de mofo invade minhas narinas e tenho certeza que minha rinite vai atacar. Agarro a maleta pela alça e puxo fazendo uma força desnecessária que acaba me fazendo bater a cabeça no armário.
Praguejo milhares de nomes enquanto levanto e caminho segurando a maleta embaixo do braço e esfregando minha cabeça com a outra mão.
- Toma aqui ó – me aproximo dele que está abaixado segurando um dos pequenos canos.
Está vestido com um roupão listrado e um chinelo de pano
- Passa a chave de fenda – pede
Deixo a maleta em cima da pia e estico para ele a chave de fenda. Volto para perto do sofá e ligo o som que vai automaticamente para a faixa 3 do CD que já estava lá dentro "Seven" de David Bowie começa a tocar.
Começo a sentir um leve aperto no peito. Tento acreditar que é porquê estou ansiosa para conhecer e estar nesse lugar tão famoso do passado. Balanço a cabeça tentando não ficar deprê de repente.
Jonathan sai do banheiro jogando a maleta debaixo da pia de onde tirei.
- Eu preciso fumar – diz enquanto enfia a mão num pote de plástico e tira de lá um maço de cigarros vazio – Droga.
- O posto da esquina deve estar aberto ainda – sugiro
Seguimos escadaria abaixo e assim que passamos pela porta de madeira do prédio um vento gelado dá um tapa em nossos rostos.
- Cacete de agulha, que frio! – pragueja alto
- Imagina, está uma delícia – solto o sarcasmo enquanto atravessamos a rua até o posto.
Nossa entrada é anunciada por um sino no topo da porta de vidro. O frentista com um casaco vermelho sangue está com a cabeça apoiada na mão e folheia uma revista da Playboy. Faço uma careta para Jonathan que dá de ombros e vai em direção ao caixa.
- 2 Derbys – pede e o frentista olha entediado, vira para trás e puxa dois maços da estante de cigarros e isqueiros.
- 9,99 – diz para Jonathan que paga e enfia os maços no bolso do roupão.
Estamos debaixo de uma árvore encarando os tijolos cor de barro do nosso prédio. Dos 4 postes da nossa rua apenas 1 funciona, iluminando somente o local em que estamos parados.
- Está com medo? – Jonathan pergunta
- Não, só consigo pensar que finalmente você vai ter dinheiro para trocar esse cigarro horrível – dou de ombros enquanto falo e encaro a bituca que ele acabará de jogar no pé da árvore.
- Essas pessoas não existem mais. Não esquenta. – Me empurra para o lado e segue em direção ao prédio – Vou ter dinheiro para comprar um Marlboro ou então um desses cigarros que os jovens adoram fumar para se sentirem adultos. Como é mesmo o nome?
- Gudang – respondo, mas ele já entrou.
Abaixo, pego a bituca de cigarro, entro no prédio e quando passo pelo correio jogo-a dentro da caixinha número onze. Uma singela lembrança para meu vizinho do andar de cima.
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Uma estranheza no tempo
Narrativa StoricaUma mulher, um vizinho esquisito e uma... Banheira que viaja no tempo? Rosa Wellington tem 27 anos e sua vida se resume ao trabalho no bar, comidas gordurosas e um interminável sentimento de que não está fazendo nada de útil. Seu melhor amigo é o v...