No decorrer daquela semana, o tempo de Suna galopava entre os cuidados com o restaurante e as recordações do passado que emergiram com mais força depois da visita do conterrâneo, José Kirin. Nascera em São Sebastião, uma cidadezinha do interior. Ela e Kirin foram as maiores vítimas dos traiçoeiros Dante, que havia sido seu namorado de longas datas na adolescência, e Beatriz, a ex-mulher de Kirin. Dante a traíra das formas mais vis que um homem apunhala uma mulher. Uma parte daquela história, só ela e sua mãe conheciam. Depois do acontecimento, fugira para capital para sarar a alma.
Havia estudado, trabalhado e se formado, enfrentando as tantas vezes em que o malfadado passado se empenhara em ser um peso no pescoço, tentando afogá-la. Mas Suna nunca permitiu que qualquer transtorno modificasse o ritmo que imprimia aos seus caminhos. Na época havia decidido que andaria com as próprias pernas em busca de paz e que não se transformaria num alguém entristecido, rendido pelas lamentações. Nesse tempo nunca lhe coube o papel de vítima e desbravara o próprio destino, mesmo tento sido ferida. A vida não era feita de perfeições, desse modo, era necessário construir novos abrigos para alma e conquistar trajetórias seguras. Poderia ter a aparência frágil, mas era uma leoa e já tivera provas suficientes sobre sua capacidade de resiliência às intempéries que a desafiavam.
Mas aquilo era apenas um barquinho perdido no oceano de seus dias. Tinha mais no que pensar, como no neurocirurgião, Vicente Max, que marcou presença quase diária no Maresia e sempre nos seus horários de expediente, junto com o advogado, Marcel Filares. O médico-cirurgião agradava os olhos de qualquer mulher. Era a visão romântica de um guerreiro nórdico; alto, de estrutura larga, braços fortes, feições másculas e intrigante, além de cabelos castanhos escuros, pincelados por poucos fios grisalhos, cortados em camadas. Os olhos escuros pareciam duas gemas azeviche e eram adornados por algumas rugas e linhas do tempo, começando a se estabelecer. Embora fosse naturalmente sério, fechado e pouco comunicativo, ele se esforçava em parecer simpático na sua presença. No dia anterior o médico não aparecera, apenas Marcel e Diego foram jantar, sem a presença do mais novo cliente do Maresia.
Naquela sexta-feira trabalharia à noite. De manhã cedinho, dedicara-se a suas andanças e corridas pela orla, o que a tinha deixado disposta. Cuidara de Zazá, sua gata de pelagem tigrada, que naquele momento dormia tranquilamente, abraçando as próprias patinhas traseiras, enquanto arrumava a casa. Morava num apartamento de dois quartos, de sala pequena, onde tinha colocado um sofá vermelho de dois lugares e uma mesinha amadeirada com um abajur, além do conjuntinho de mesa e quatro cadeiras de frente a uma pequena peça. Suna fazia questão de mantê-lo limpo e em ordem como se estivesse esperando alguém. Só que não existia um alguém, apenas poucas amigas que fizera durante a faculdade, Maya, a garçonete do Maresia, sua mãe, Fátima Ferraz, que esporadicamente a visitava...
O interfone tocou quando concluía a limpeza da sala. Contraiu o cenho surpresa e foi atender.
— Bom dia, dona Suna, o senhor Dante quer falar com a senhora – gelou, as mãos suavam frio, os olhos estalaram, o coração disparava. — Ele pode subir? – continuava emudecida e em choque. Aquilo só podia ser brincadeira. — Ele pode subir, dona Suna? Dona Suna...
— Confirma o nome outra vez, por favor... – deveria ser engano, acreditou por breves segundos.
— É mesmo Dante, de São Sebastião.
Expirou forçosa. O corpo parecia pesar toneladas, a barriga dava pontadas. — Pode, deixe que suba... – aquilo era realidade. Iria encarar Dante! De repente, arrependeu-se de ter deixado ele subir, mas era tarde.
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SÓ POR UM ANO (Degustação)
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