1 • Não saia

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1. Cidade Nova

Eu não me lembro de como esse dia começou, tudo é como uma neblina densa, o que não se diferencia muito de para onde eu estou indo. Não me lembro de acordar, me vestir, encontrar meus novos pais e sair daquele inferno de orfanato. Mal me lembro que a minha irmã mais nova estava do meu lado no banco de trás do carro dos meus pais adotivos. Lá fora está tão lindo, ver como as nuvens se formam, deixando o céu escuro, mesmo ainda sendo uma da tarde. O aquecedor do carro está ligado, mas mesmo assim me aqueço com o cobertor, tô tão feliz que não me lembrei de tirá-lo quando comecei a suar.
- Como você ta se sentindo, Rose? - A minha nova mãe me tira do meu trance.
Esse é o meu nome, Rose, quase me esqueci dele. Olho para os olhos da mulher no volante, olhos verdes em uma pele negra, dando um linda contraste.
- Eu tô muito feliz - digo, sorrindo - nem consigo acreditar que esse dia finalmente está acontecendo.
- Que bom que você se sente feliz - diz o homem do lado dela, o meu novo pai - fico feliz por saber disso.
Ele fecha os olhos escuros quando se vira e sorri para mim e para a minha irmã.
- Mas como era lá no orfanato? – a mulher perguntou, sem tirar os olhos da estrada.
- Assustador – Mary, minha irmã, responde – Não é como na-quele filme que a gente assistiu, lembra, Rose?
- Lembro – digo, tendo lembranças daqueles poucos dias que tivemos sessão de cinema – Na TV tudo parece tão bonito, mas as pessoas podem ser cruéis ás vezes, bem, na maioria das vezes se você for órfão.
- Assim que entrei naquele lugar eu já percebi que tinha algo de errado – A mulher fala enquanto faz uma curva – Ainda lembro quando dei as costas para um dos funcionários e quando me virei para falar mais uma coisa, ele estava com uma feição tão arrepiante, como se tivesse desgosto por mim.
- Juro, se tivéssemos condição, tiraríamos todo mundo de lá, mas são tantas crianças – disse o homem, baixando a temperatura do aquecedor.
- Por isso decidimos ficar com vocês duas – disse a mulher – Pois seriam duas pessoas fora de lá.
- E a gente agradece muito – digo, tentando disfarçar o choro – Vocês nem fazem idéia do quanto ficamos felizes quando soubemos que vocês nos escolheram.
Mary se aproxima mais um pouco de mim e me abraça com um braço só, aquele braço ainda com pequenas manchas roxas.
- Lá na cidade tem outras crianças para eu brincar? – pergunta Mary. Mesmo com dez anos, ela ainda tá com uma Barbie na mão, mas não julgo ela, se alguém tivesse me dado uma Barbie, eu estaria com ela agora. Seu cabelo escuro e meio ondulado tá todo bagunçado, e ela nem pode colocar a culpa no vento, já que a janela do carro está fechada.
- Claro que tem - diz minha mãe, ficando séria – mas também tem algumas regras que queremos que vocês sigam, conto quando chegarmos.
Tiro o cobertor, me ajeito no banco e coloco uma música no meu mp3.
- Já estamos acostumadas com regras - digo, colocando os fones.
- Eu sei que deve ser difícil para vocês falarem sobre isso - diz meu pai - mas como vocês foram parar naquele limbo?
- Assim que tiveram a minha irmã, nossos pais nos deixaram na porta daquele orfanato, com a promessa de voltarem - digo, olhando para fora – mas eles não eram bons com promessas.
Um silêncio reinou dentro daquele carro, e eu era a rainha, que não deu a ordem de continuarem falando.

2. Não Saia

Depois de passarmos por um muro imenso, as ruas até a nossa nova casa estavam vazias, só haviam fantasmas, que seus lamentos podiam ser ouvidos pelo vento.
- Por que não tem ninguém na rua? - Mary cortou o silêncio.
- Isso tem a ver com as nossas regras - disse meu pai e nenhuma outra palavra saiu daqueles lábios até chegarmos em casa.
- Chegamos! - disse a minha mãe, desligando o carro.
Saí do carro e ajudei meu pai a tirar as malas. Com elas nas mãos, fomos entrar na casa, mas antes do meu pai poder tocar na maçaneta, a porta se abriu e uma garota com dreads verde escuro estava parada na passagem.
- Cassandra! - disse minha mãe, surpresa.
- Oi, dona Márcia! - disse a garota, sua voz era como um canto dos deuses - Eu já tava indo.
- Mas já? - disse Márcia - Não quer ficar e conhecer as garotas?
Cassandra olhou bem nos fundos dos meus olhos, que, estra-nhamente, não foi tão estranho, era como se ela quisesse me falar alguma coisa que estivesse engasgado na garganta, depois ela olhou de relance para Mary.
- Infelizmente, não vou poder ficar, já tá na hora de ir para casa, - ela olha para Márcia - você sabe como é perigoso estar na rua uma hora dessas.
Pego o pulso de Mary que está com o relógio e vejo, entre as gotas do sereno, que são duas da tarde.
- Sei sim, querida - disse Márcia - Vai com calma para casa.
- Vou si, - disse Cassandra - Tchau Márcia, tchau Jason.
Meus pais acenam com a cabeça.
- Tchau, garotas - ela diz, olhando só para mim, parece que a sua voz ficou mais macia, não sei explicar, e ela abriu um pequeno sorriso.
Me viro quando ela passa por mim, ela também se vira en-quanto coloca o capuz, e acena, eu também aceno de forma tí-mida.
Entramos na casa, e ela era tão linda, os móveis pareciam intocados, as decorações eram modernas, plantas estavam concen-tradas em vários pontos da casa, a arquitetura do lugar parecia ter sido feita por alguém que cobrava caro, e com razão, era tudo muito bem feito.
- Quem era aquela garota? - Mary pergunta.
- Uma amiga da nossa filha - Jason diz, deixando as malas no canto da sala e eu faço o mesmo
- Vocês não disseram que tinham uma filha - digo, tirando o casaco.
- Era pra ser uma surpresa - disse Márcia, tirando o suéter.
Finalmente pude ver o seu corpo, ela parecia se cuidar bastante, suas curvas eram de dar inveja.
- Surpresa! - disse uma garota, descendo das escadas, não pude ver o seu rosto, pois ela caiu em meus braços, me apertando e rindo - Vocês não sabem o quanto eu tô feliz de finalmente ter irmãs!
A garota se afasta de mim e abraça Mary, e juntas dão pulinhos de alegria.
- Essa é a Sam - Jason disse, tirando o casaco - nossa filha.
A garota sai do abraço de Mary e se levanta, ofegante, tira o cabelo do rosto e olha para mim. Seus olhos escuros me olham de cima para baixo, sua pele parecida com a da mãe, sua mão ainda ajeitando o cabelo ondulado, o meu peito descia e subia na mesma velocidade do seu, quando meus olhos pararam nos seus, ela riu de novo e foi abraçar os pais.
- Muito obrigada! - ela diz, os pais sorriam tanto, que me peguei sorrindo também.
Ela pega a mala de Mary e começa a subir.
- Vou mostrar o quarto de vocês! - diz Sam, subindo as escadas.
- Vou preparar uma sopa para gente - disse nosso pai, indo pra cozinha - Você é vegetariana, né Rose?
  - Sou sim - digo, tímida - Mas a Mary não, então pode fazer alguma carne separada, se puder?
  - Pode deixar - ele diz, já na cozinha, enquanto Márcia ia até lá sorrindo para mim.
Mary corre na direção de Sam, pego a minha mala e vou até elas, nosso quarto ficava na última porta a direita do corredor.
- Meu quarto fica bem ali - disse Sam, apontando com uma mão para a porta mais próxima do meu novo quarto, e com a outra mão, ela abria a porta.
O quarto também era lindo, pintado de um azul bebê, duas camas, cada uma em um canto diferente, mobília sem decoração, paredes lisas sem quadros ou pôsteres. E uma grande janela, fechada, começou a chover e a chuva batia forte nela.
Márcia bate na porta e entra no quarto, Mary se joga em uma cama.
- Essa cama é minha - diz ela, rindo
Sento na outra cama, que é a mais próxima da janela. Sam se senta junto com Mary e começa a pentear o cabelo dela com a mão, já Márcia se senta ao meu lado.
- Como eu disse no carro, temos algumas regras que queremos que vocês sigam, ok? - disse Márcia - A primeira delas é, depois das duas e meia da tarde, nada de sair de casa, mas só se estiver chovendo, depois desse horário quero todas as janelas fechadas. Todas as janelas.
Concordo com a cabeça e olho para a janela fechado do meu lado, me pergunto se já passou das duas e meia.
- Por quê? - perguntou Mary.
- Não falamos sobre isso - disse Sam, tentando tirar a mão do cabelo de Mary.
Concordo com a cabeça de novo. Márcia dá um beijo em minha cabeça e sai do quarto.
- Eu vou deixar vocês aí - disse Sam, com a mão livre do cabelo da minha irmã, se levantando - Qualquer coisa é só irem no meu quarto.
Sam fechou a porta e eu me sentia tão estranha. Nunca ninguém quis adotar a gente, e agora estamos aqui, com uma família, poderia ficar mais perfeito? Olho para Mary e ela chorava.
  - Não fica assim - eu digo, com pena, indo abraçar ela.
  - É que eu tô muito feliz - ela diz entre os soluços - Era o meu sonho.
  - Eu sei, Mary - digo, sorrindo e chorando junto com ela.
Abraço ela mais forte.
  - Eu sei. Mas ainda assim temos que ser fortes, temos que conquistar essa família.
- Será que eles seriam capazes de nos levar de volta para lá?
- Eu gosto de acreditar que não fariam isso – digo sem olhar para Mary.
A tarde foi maravilhosa, comemos a sopa do Jason, quente e cheio de legumes, no meu prato nada de carne.
Depois assistimos a um filme de terror, Márcia e Jason sentados agarrados no sofá, Mary dormia no outro sofá, e eu e Sam estávamos deitadas no chão, Sam com a cabeça na minha barriga, eu estava tão fascinada pelo filme que só depois de muito tempo que eu vi que ela me olhava, seus olhos brilhavam no meio da escuridão da sala.

Quando há chuva lá foraOnde histórias criam vida. Descubra agora