Ana

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Agarrei a fechadura com tanta força que poderia ser capaz de arrancar aquela porta. Bati forte na mesma proporção, no entanto demorei pra conseguir soltá-la.
Era a minha casa. A nossa casa. Onde minha mãe e eu vivemos toda a vida.
Consegui soltar. Meus dedos estavam vermelhos, quase esmagados pelos meus anéis. Respirei fundo e dei adeus à minha felicidade.

******

Após viajar o resto do dia e uma noite de ônibus, já em outra cidade, meus pés estavam doendo, minha barriga era um vazio sem fim.
Se minha mãe estivesse aqui, já teria me arrastado para um fast-food, e a gente teria comido o maior hambúrguer, seguido de batatas fritas com sunday.
Atravessei a rua atraída por um cheiro irresistível de comida caseira. Tinha cheirinho da comida da minha avó. Não sei se foi a fome ou a saudade dela que me fez abrir a porta daquele restaurante.
Ainda era cedo, não estava aberto, mas fui recebida com um sorriso doce de uma senhorinha fofa que parecia mexer no caixa.

"Meu docinho, ainda não abrimos, mas o que
uma menina tão graciosa assim deseja?".

Fiquei com cara de Hã?!

"Estou procurando emprego." (1ª mentira)

"Infelizmente não estamos contratando no momento. Mas você pode nos deixar seu currículo ou contato para uma vaga futura."

Meu Deus! Eu não tinha currículo, muito menos contato porque nem celular mais eu tinha. Na pressa e no meu desespero, deixei tudo pra trás: roupas, fotos, documentos. Só vieram comigo a carta deixada pela minha mãe, minha carteira de motorista e o resto de dinheiro que sobrou do seu enterro porque já estavam na minha bolsa.
Foi aí que percebi o quanto eu precisava de um
emprego, uma nova casa, uma nova vida.
A minha cara de desespero deve ter sido visível porque a senhorinha, que àquela altura já tinha se apresentado como dona Julieta, me convidou para sentar e almoçar com ela.
Não houve uma "conversa" visto que apenas ela falava sobre o restaurante, sua família, clientes. E de repente ela parou seu monólogo:

"Qual é mesmo o seu nome?",

"Sara. É Sara." (2ª mentira).

Bom, esse era o nome que eu me dava quando brincava com as minhas bonecas, num mundo imaginário. Ali, distante de toda verdade, eu poderia ser a Sara, no seu mundo idealizado.

"Sara. Nome lindo para uma menina de olhos brilhantes".

Me desceu um nó da garganta "olhos brilhantes"... ela sempre falava deles.

Lembrar-me da minha mãe mexeu demais com as minhas emoções, estava vendo a hora que desabaria na frente daquela mulher tão simpática. Foi por isso que dei um pulo da cadeira, agradecendo o almoço e acabei derramando a jarra de suco. Merda!

"Sara, te espero amanhã às 8h. Não sei porque, mas alguma coisa me diz que posso confiar nesses olhinhos. O serviço é pesado, mas vejo que você precisa. Então, a escolha é sua."

Saí de lá agradecendo muuuuito a Julieta (como ela mesma insistiu). Andei pelas ruas sem saber aonde ir.

******

"Desde o primeiro momento em que você passou a existir, tive a certeza de que eu poderia viver, mesmo quando eu já não estivesse mais aqui. Você foi o meu alívio diante da dor. E se está lendo esta carta, é porque agora você é o meu Eu no mundo, minha Ana."

Minha outra vidaOnde histórias criam vida. Descubra agora